October 18, 2020

Deambulações - acerca de ensinar

 


Ensinar é um bocadinho como ser actor num filme, com a diferença que na aula os espectadores intervêm o tempo todo e influenciam a cena. Mas é um bocadinho como ser actor: uma pessoa tem uma história para contar, que é a matéria que tem de leccionar e tem um tempo para o fazer o que obriga a estrutura e economia. Tal como num filme, onde os actores para representarem 10 minutos de filme tiveram, muitas vezes, que fazer uma pesquisa de meses, também nas aulas, para os 90 minutos que os alunos experienciam há anos de leituras, de aprendizagem empírica, de formações, de reflexão, ajustamentos, informação, recolecção constante de material que encontramos na internet e na vida.

Um professor, penso, tem que ir para uma aula preparado com um plano A e um plano B, mas também inspirado. A inspiração não é uma luz que se espera que apareça. Não. A inspiração trabalha-se. É preciso buscá-la activamente e alimentá-la diariamente, porque nos dias em que vamos desinspirados para as aulas, o que acontece às vezes, a experiência é péssima e incómoda: os olhos e as caras dos alunos são um espelho onde se vê a verdade. 

Onde é que um professor se inspira? Na vida, nas pessoas à sua volta, nos pensamentos dos outros, nas figuras do passado, na vida rotineira e na inspiradora dos outros, no caos do mundo e na sua beleza e ordem; na ciência e na poesia e na reflexão sobre essas coisas todas. Temos que estar embebidos nessa espécie de bolha de milhentas cores para poder abri-la para outros. 

Um professor tem que ter flexibilidade para encaixar imprevistos - que os há sempre nas relações humanas-, nomeadamente os que decorrem de estarmos dentro de uma sala com 30 adolescentes emocionais. Se os alunos estão emocionalmente perturbados não conseguem estar no momento e aprender, de modo que um professor tem de ser uma almofada de absorção de choques com devolução de validação, limites e tranquilidade. O que não é fácil.

Ontem, na acção de formação, a formadora pediu-nos que identificássemos ideias automáticas recorrentes negativas relativamente ao trabalho, pois um professor que também não tem as suas emoções geridas não consegue ter um ambiente de trabalho equilibrado e próprio para a aprendizagem. De uma longa lista que ela forneceu só tenho uma, que tem que ver com culpabilização, mas não a considero negativa. É o que é.

Lembro-me de todos os casos de alunos difíceis [no sentido de complexos e muito introvertidos e não no sentido de agressivos ou ordinários] em que falhei redondamente e isso parece-me que vem de me culpabilizar, mas não vejo como poderia ser de outro modo, porque os miúdos, sendo miúdos e não estando conscientes dos processos que os põem em certos bloqueio não têm recursos para agir de maneira diferente. Uma pessoa aprende com os erros, mas são erros e não penso que seja negativo considerá-los como tal. 

Ensinar é também ser um advogado de defesa do tema que estamos a ensinar: seja uma ideia, um autor ou assunto. Da mesma maneira que um actor representa qualquer papel e em cada personagem que encarna, mesmo que seja um assassino, tem que compreender as razões do personagem se não a representação não é credível. Nas aulas é a mesma coisa. É preciso ser a ideia, o conceito, o assunto ou o autor. É preciso pensar na maneira de abordar um tema, ou um conceito complexo. Exemplos e questões provocadoras. Pequenos filmes, histórias. Preparo uma aula de maneira que se vê que houve preparação mas parece tudo sair naturalmente com espaço para criação. Nem sempre se consegue, mas é nesse nível simultâneo de concentração e fluidez que se dão as melhores aulas.

Ensinar é fazer do caos um cosmos.


1 comment: