August 15, 2020

O gosto da vida e a tranquilidade



O gosto é um dos sentidos da percepção, o que está ligado ao paladar, o que indica que para apreciarmos a vida ela tem de ter algum sabor. Saborear a vida, diz-se. Ora o sabor é subjectivo, o que para uns é doce para outros é amargo, o que para uns é picante para outros é suave e para outros extremamente agressivo.
Neste sentido, nem toda a tranquilidade leva ao gosto da vida.
A tranquilidade de Pirro, dos cépticos, a ataraxia, aquele estado de tranquilidade livre de sobressaltos, indiferente às vissicitudes da vida, sem opiniões a favor ou contra o que seja pois que tudo é indefinido e em mudança, implica uma vida sem sabor, nem doce, nem amarga, pelo menos, não o suficiente para incomodar. Uma vida um bocado insonsa. Troca-se o sabor pela calma. Às vezes apetece mas só por uns instantes porque é uma vida contrária aos instintos do eros, no sentido freudiano do termo.
A tranquilidade estóica, a eudaimonia, é uma vida, já não de indiferença mas de aceitação, de resignação pelo estado de coisas tais como ocorrem. Os estóicos são deterministas e defendem a libertação das paixões pela razão. Prudência e auto-controlo acima de tudo, mesmo nas relações humanas. Não deixa espaço para as grandes lutas: contra a injustiça, contra o mal... são lutas que requerem um pathos muito forte. Às vezes apetece mas só por uns instantes porque é uma vida contrária aos instintos do eros, no sentido freudiano do termo.
Que outro tipo de tranquilidade existe? A tranquilidade que se sente no fim de uma luta intensa que acaba bem? É um tipo de tranquilidade que mostra ser esta um intervalo entre esforços. Uma intermitência entre lutas. Um repouso impermanente. Será que sem a intermitência do esforço almejávamos tão fortemente a tranquilidade?  É possível uma vida sem luta? Talvez seja para certas pessoas em certos contextos que não consigo imaginar porque não há vida nenhuma sem perda, sem doenças, sem frustração, sem paixões sem eros nem Thanatos.
A vida boa que inclui, o gosto da vida, o saborear da vida, será aquela em que paralelamente à labuta diária, temos um porto seguro de tranquilidade, sejam amigos, sejam pessoas da família, sejam companheiros: que nos percebem, nos valorizam, em quem nos reconhecemos como pares e com os quais somos nós mesmos, sem máscaras e estamos bem com o que somos, pessoas que nos desafiam e nos acrescentam qualquer coisa para dar gosto à vida. Como quem esteve numa viagem e regressa a casa. A tranquilidade e o gosto da vida são pessoas. Porque apreciar a paisagem, a arte, a comida e tudo o mais enriquece a vida mas por si só, sem aquelas pessoas que nos fazem sentir em casa, não conseguem infundir o gosto pela vida.

"Para os índios [da Amazónia], quando um jaguar se vê ao espelho, ele vê um homem" (Eduardo Viveiros de Castro)






Illustrator Ferdy Remijn
www.ferdyremijn.com

3 comments:

  1. Será que é por isso que a vida me começa a ser um pouco indiferente? Afinal, quem é que gosta mesmo de mim?

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  2. Eu sei! Eu também gosto muito de ti!😊

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