Abri a TV e fui dar com esta cena deste filme - acho que é a melhor cena da ideia de 'comunidade' que já vi filmada. A cena dos indivíduos empoleirados na estrutura de madeira do celeiro a colaborarem uns com os outros enquanto as mulheres colaboram umas com as outras a preparar o almoço, o vestuário deles e delas quase indistinto e a atmosfera de esforço colectivo positivo, sublinhada pela música extraordinária de Jarre, passam uma ideia de endogrupo extremamente coeso.
Este filme retrata uma comunidade de mennonitas (amish), anabatistas da Velha Ordem, como lhe chamam, por serem os mais tradicionalistas, de origens suíça e alemã da Alsácia.
No filme -e esta cena é elucidativa- percebemos os Amish como uma nação cuja pátria não é o país em que vivem. Na realidade não têm pátria ou a sua pátria, se a têm, é imaginária e situa-se no domínio de um Elysium cristão. Eles vivem nos EUA, estes no Estado da Pensilvânia, mas não se reconhecem como americanos, não pagam impostos, não aceitam ajudas do Estado, não reconhecem a bandeira americana. São uma nação espiritual - estão ligados por uma ideia de vida, de objectivos religiosos e de lealdade aos princípios cristãos. São pacifistas e vivem pela lei do Amor como diapasão das relações humanas.No filme, parece idílico, mas não é: são uma comunidade rígida e não têm soluções para os membros que se desviem, nem que seja um milímetro, das regras. Expulsam-nos para que não possam pôr em causa a pureza do grupo.
O que quero dizer é: a comunidade funciona bem porque são educados para terem uma vida simples e para serem amistosos, mas os seus princípios doutrinários são exclusivos. Penso que é isso que mais marca a 'nação' - é uma ideia, um conjunto de preceitos e aspirações que une um conjunto de pessoas para além de qualquer territorialidade. É por isso que franceses nascidos em França vão para a Síria dar a vida, se for preciso, pela nação muçulmana: porque não têm uma ligação espiritual, emocional, ao povo do seu país de origem: a pátria francesa, neste caso.
O nacionalismo tem esta característica de imaterialidade, cosmopolitismo, por ser a adesão a uma ideia, a uma visão e essa visão não estar circunscrita a um território único. Nação, além disso, ja teve uma conotação com povo escolhido por deus ou algo do género.
Já a pátria, pelo menos na visão de Ortega y Gasset, é mais uma paisagem: uma paisagem material dos tons, cores, cheiros, ambientes do sítio em que nascemos e crescemos. É assim como eu sentir uma ligação especial a campos de sobreiros - é porque são a árvore da minha infância e estão emocionalmente ligados a memórias de campos com certos aromas, a experiências de vida, etc. O patriotismo são memórias episódicas, emocionais.
Mas então, se a pátria é essa paisagem e não tem a característica rígida da nação como grupo que é fiel a uma visão, uma ideia, uma aspiração, porque é que as pessoas vão morrer pela pátria?
Eu sei que estes termos são difíceis de definir, que por vezes se sobrepõem e que alguns, como nacionalismo, nasceram dos jacobinos e da luta contra o feudalismo e a monarquia. Já li algures que isso terá que ver com o facto de identificarmos a pátria com os pais. Pátria refere-se a pater e patris, os pais e os antepassados. A mãe-pátria, dizemos. Defender a pátria é como defender os pais e os avós.
Mas então o patriotismo é melhor que o nacionalismo? Bem, o patriotismo é exclusivo. Enquanto nos vemos como indivíduos de uma pátria, olhamos os outros como estranhos e impedimo-nos de os ver como patrícios, se entendermos os antepassados remotos como comuns a toda a humanidade e os outros seres humanos como nossos consanguíneos. É claro que, se se restringir o diâmetro do círculo, os outros são todos estranhos, como naquele poema da Sophia,
"Sou o único homem a bordo do meu barco.
Os outros são monstros que não falam,
Tigres e ursos que amarrei aos remos,
E o meu desprezo reina sobre o mar."
O patriotismo pode ser tão nefasto e corrosivo como o nacionalismo. Para aqueles patriotas para quem a mãe-pátria é uma validação identitária, uma ofensa à pátria é uma ofensa pessoal que os atinge na sua individualidade. 'Nós os portugueses vamos para qualquer parte do mundo e damo-nos bem com todos' - 'nós os ingleses somos British e resistimos a tudo, nada nos deita abaixo' - 'nós russos somos inexpugnáveis' - 'nós americanos somos livres', etc. Se as pessoas vão buscar a sua construção identitária a uma característica que alocam a um território, depois esse território é a sua força e se for preciso defendem-na até à morte.
Os americanos, por exemplo, falam constantemente nos princípios dos founding fathers como se eles fossem excepcionais por serem americanos e não por serem bons princípios. Os princípios da Carta das Nações Unidas são bons mas muitos povos dizem não os quererem por terem sido pensados por europeus, como se esse facto fosse uma ofensa à sua força identitária e reconhecê-los como bons uma submissão de uma nação a outra.
Por conseguinte, enquanto o patriotismo -que é diferente de usos e costumes culturais, apesar de os incluir- e o nacionalismo regerem as relações entre os povos, dificilmente conseguiremos consenso em torno de princípios universais.
Trump, um patriota e um nacionalista é a prova disso.
Já que falaste na França e nos seus imigrantes, como explicas que a segunda geração de portugueses nascida em França, não se identifica com o país dos seus pais mas sim com o país que os acolheu? Alguns até têm vergonha de falar português....
ReplyDeleteManela
Nasceram lá, cresceram lá e reconhecem a França como a sua Pátria. Conhecem Portugal, se conhecem, como um destino de férias na terrinha com que não se identificam, nem um bocadinho. Depois, como querem ser vistos, em França, como franceses e não como filhos de imigrantes, adoptam os comportamentos, os preconceitos e idiossincrasias dos franceses. Como os franceses são muito chauvinistas e têm uma impressão dos portugueses como um povo ignorante muito abaixo do estatuto deles, envergonham-se dessas suas raízes, como os novos ricos muitas vezes têm vergonha dos pais, primos e tios que têm lá na terrinha.
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