Uma das coisas que faz esta vida valer a pena está em que, de vez em quando e muito inesperadamente, acontecem-nos coisas e pessoas extraordinárias. É certo que é preciso estar desperto e reconhecê-las porque há quem passe ao lado delas sem as ver ou valorizar. O que acho piada é que esse aspecto da vida, pelos vistos, também se estende à física. Pelo menos, é isso que diz o meu amigo Mário Pimenta, neste entrevista ao P
O CERN dedica-se à construção e operacionalização do conhecimento científico numa lógica de cooperação pacífica internacional. É preciso lembrar que a WWW, a internet, nasceu ali, justamente para que cientistas de todo o mundo pudessem compartilhar dados e, mais ainda, foi propositadamente deixada livre, para fomentar o conhecimento e a cooperação no planeta?
Mário Pimenta: “Toda a história da física mostra que a coisa mais interessante é aquilo que não se espera”
Delegado de Portugal ao Conselho do CERN e presidente do LIP — Laboratório de Instrumentação e Partículas, Mário Pimenta defende que a estratégia apresentada esta sexta-feira abre o caminho à exploração de novas fronteiras do conhecimento e vai manter a Europa na liderança da ciência e da tecnologia.
O físico português Mário Pimenta DR
Andrea Cunha Freitas -- 19 de Junho de 2020, 20:46
Em entrevista ao PÚBLICO, Mário Pimenta fala do que pode estar para lá do modelo-padrão que explica o Universo tal como o vemos e também do que Portugal já ganhou e ainda tem a ganhar com o CERN. Sobre o futuro, o professor catedrático no Instituto Superior Técnico lembra que “a ciência não pode ser angustiada”.
Há vários interessados em avançar para um novo grande acelerador de partículas de nova geração. Além do CERN há a China e o Japão. O que acha que vai acontecer?
O Japão tem nos seus projectos a possibilidade de fazer um acelerador linear [assente num colisor electrão-positrão como a fábrica de Higgs que a Europa quer fazer]. Mas ainda não está decidido, eles querem que haja muito dinheiro de fora, precisam de um grande consórcio internacional. A China corre no seu tabuleiro e também poderá fazer um grande acelerador, mas não tem a tecnologia para isso nesse momento. Se o CERN dissesse hoje que desistia deste projecto, a China deveria avançar mais depressa. O que é claro é que o CERN é o único laboratório que tem neste momento a densidade de gente e a tecnologia capaz de fazer estes aceleradores.
Não é uma estrutura demasiado grande e dispendiosa para avançarem os três?
Se o Japão avançar, a Europa vai encarar esse projecto como um esforço global e, com certeza, vai participar. O que não significa que na Europa não venha a fazer-se uma fábrica de Higgs. Mas esse é um debate que não é para fazer agora. O que se aprova hoje é um caminho e o começo dos estudos mais aprofundados sobre isso.
Ainda não está nada decidido então?
Não. O que está decidido é abrir o caminho para começar os estudos. E a primeira opção é a construção de um novo acelerador circular. Mas é possível que se chegue à conclusão, por uma razão qualquer, que não há condições técnicas, políticas ou financeira para avançar. Mas essa decisão só será tomada daqui a cinco anos.
Sobre Portugal, qual é o impacto que esta estratégia pode ter para o país?
Na ciência é muito grande. A entrada de Portugal no CERN foi a entrada de Portugal na primeira organização científica internacional, numa iniciativa de José Mariano Gago em 1986 e teve um enorme impacto na ciência em Portugal. Felizmente, hoje em dia há muitas colaborações internacionais, mas o CERN continua a ser um caso de referência nas suas competências, ou seja, na física, na tecnologia, na formação e também na colaboração com a indústria. À nossa escala, claro. Nós representamos 1% do CERN, do ponto de vista financeiro da nossa quota, mas à nossa escala, quando se olha para os números, temos tido uma taxa de sucesso que é muito elevado e da qual nos devemos orgulhar. São oportunidades muito importantes para o nosso país. O trajecto do desenvolvimento científico em Portugal nos últimos 35 anos está muito ligado ao CERN.
O que é que Portugal tem a ganhar?
Dou-lhe apenas mais um exemplo, além da formação científica, que tem a ver com a indústria portuguesa participa no CERN desde o início. Tem havido grandes contratos entre o CERN e a indústria, com transferências tecnológicas imensas. Há vários exemplos, com o Instituto Português de Soldadura, com os tanques de hélio líquido, entre outros projectos que são hoje coordenados pela Agência Nacional de Inovação. Portanto, há um enorme benefício não só por contratos directos, mas sobretudo pelo salto tecnológico que muitas vezes as empresas dão com esta colaboração e com o selo de garantia e reputação do CERN. Temos hoje em dia pequenas startups de alta tecnologia, de electrónica, que estão ligadas ao CERN. Uma parte da contribuição portuguesa no projecto [do acelerador LHC] de alta-luminosidade do CERN é com a indústria portuguesa. Temos nichos de tecnologia de que nos podemos orgulhar.
Depois de terem sido encontradas as partículas previstas no modelo-padrão, o que é que ainda estamos à procura?
Toda a história da física mostra que a coisa mais interessante é aquilo que não se espera. As maiores descobertas são sempre aquelas que a tecnologia e os instrumentos permitem alcançar, mas não são aquelas que justificaram o pagamento desses objectos.
Mas o que podemos descobrir além do modelo-padrão?
Sabemos que o modelo-padrão funciona bem a uma determinada escala. O modelo-padrão está para o futuro como a mecânica de Newton esteve para a mecânica de Einstein. A mecânica de Newton não está errada, e eu continuo a ensiná-la aos meus alunos da universidade, mas é dentro de um determinado conjunto de aplicações. Se eu for trabalhar sobre velocidades perto da velocidade da luz, não funciona. Mas se eu quiser estudar as leis do futebol e o esférico a andar, não preciso de Einstein, só preciso de Newton. Se eu quiser estudar um GPS, já preciso de Einstein…
Vem aí um novo modelo?
São fronteiras que se abrem. Temos uma comunidade teórica que tem muita imaginação, que publica centenas de milhares de artigos a dizer quais são as hipóteses a seguir. Compete ao CERN a parte experimental. Não há verdades na ciência. A ciência nunca diz que uma teoria está certa. O que a ciência diz é que uma teoria ainda não está errada. A mecânica de Newton não esteve errada. Surgiu Einstein a dizer que era preciso mais qualquer coisa. A ciência avança assim. Uma teoria nunca está certa ao ponto de ser uma verdade absoluta: funciona. A ciência é operacional, explica o mundo. Temos uma teoria agora que explica aquilo que nós conseguimos medir. Precisamos de experimentar as novas hipóteses. Neste momento não há nenhuma evidência de que chegámos ao fim. Já houve duas pessoas – o lorde Thomson, no fim do século XIX, e o Stephen Hawking – que disseram que a física tinha acabado e as duas estavam erradas. Stephen Hawking chegou mesmo a escrever um livro chamado O Fim da Física. As pessoas têm a mania de achar que a determinada altura descobriram a teoria final. Isso até seria aborrecido. Na verdade, é uma quimera.
Vale a pena o risco de apostar tantos recursos mesmo não sabendo ainda o que vamos encontrar?
Parece muito dinheiro, mas também é muito pouco. É conforme a escala. Se pensarmos no orçamento para a defesa, não tem nada a ver. Vale a pena investir. É isto que nos faz mexer. É aquilo que permite o melhor da humanidade que é o conhecimento. Um dos aspectos extraordinariamente importantes do CERN e foi para isso que ele foi fundado é a investigação pacífica, não militar, isso está nos estatutos do CERN: meter à volta da mesa a trabalhar gente de países que podem estar em guerra. Assisti a isso na altura da Guerra Fria, entre os russos e os americanos, assisti com os ingleses e os argentinos que estavam na Guerra da Malvinas e ao mesmo tempo a trabalhar juntos na mesma experiência, com os israelitas e os palestinianos… Ter um lugar onde isto pode acontecer, pelo conhecimento, tem um valor inestimável.
Por explorar há ainda questões que vão além do modelo-padrão, tudo o que está relacionado com a matéria escura, a energia escura…
Nós queremos saber onde estamos, para onde vamos, isso tudo. Mas a ciência não pode ser angustiada. A ciência aponta um caminho, qual é a estrada. E depois vai-se descobrindo. O CERN está a dar uma mensagem para a Europa do ponto de vista de valores, acreditar na comunidade internacional científica pacífica e não militada. Está a dar uma imagem da tecnologia, dizendo que queremos continuar a ter os melhores engenheiros e técnicos e dar-lhes desafios. Temos uma mensagem na ciência porque sem a ciência não há progresso.
Então, a física de partículas tem futuro…
A física de partículas é parte do futuro.
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