April 09, 2020

Coronavirus Li Wenliang - o que me incomoda nas metáforas de guerra acerca da pandemia



''Não estamos ganhando a guerra contra o vírus'', diz ONU


A primeira tem que ver com a hierarquia: quem está a combater, quem são os soldados e os generais. 
Como bem sabemos, numa guerra, os soldados são quem vai para a frente de batalha dar a vida, muitas vezes mal armados, porque os generais, que são os militares no topo, os que não saem dos ministérios e quartéis, os políticos e os homens das empresas de armas e de dinheiro, em suma, os decisores, muitas vezes desviam o dinheiro do equipamento para interesses próprios e abandonam os soldados à sua sorte.

No fim, aplaudem-nos e chamam-lhes heróis. A alguns até dão medalhas. Depois mandam-nos para casa para as mesmas vidas difíceis que tinham e nunca mais se lembram deles, ficando eles, os decisores, que se resguardaram durante a guerra, com os despojos da guerra e o poder de se resguardarem dos efeitos colaterais das guerras. Alguns, durante a guerra, fazem donativos que parecem grandes, mas são uma ínfima parte do que desviaram dos outros em tempos de paz.

Nesta pandemia, a metáfora de guerra serve para mandarmos os médicos, enfermeiros e outro pessoal que trabalha em hospitais para a guerra, com muitas palmas e títulos de heróis, sem ter que lhes dar condições permanentes de vida aceitáveis para o trabalho que fazem, muitos deles.

Em tempos como estes de pandemia, todos os trabalhadores que são tratados como soldados e são atirados para aquilo que chamam a frente de batalha deviam estar a receber um subsídio de risco.
E também outros cujos contratos de trabalho nunca incluíram risco de vida, como os trabalhadores dos supermercados, cuidadores de lares de idosos, etc., o deviam receber.

Estes trabalhadores hão-de voltar a ter que fazer 20 greves para que lhes subam 1 euro no salário, esquecidos já, os decisores, de como precisaram deles. E os outros hão-de voltar a ter que fazer 20 greves para que lhes permitam contratar um médico ou um enfermeiro em vez de ter apenas tarefeiros. 

Em segundo lugar, a retórica da guerra traz consigo toda a linguagem e o comportamento que lhe é associado: veja-se como os líderes dos países, em vez de colaborarem uns com os outros, adoptaram uma linguagem e comportamento de conflito uns para com os outros e como em alguns países se fala de medidas de controlo de população de excepção, de recolher obrigatório, de economia de guerra, etc. e se usa essa retórica para militarizar a sociedade e diminuir e/ou enfraquecer os seus mecanismos democráticos. 

O único campo onde faz sentido usar essas metáforas é aquele em que se movem os investigadores científicos e médicos que estão a tentar perceber as armas e defesas do vírus para o matar.

Agora, os políticos e dirigentes tinham que ser capazes de traduzir essa linguagem bélica para uma linguagem política de cooperação social positiva, intra e inter-nações. 

A sociedade não está a combater numa guerra; quem está a combater são os investigadores, epidemiologistas, etc., os médicos que tratam os doentes e os enfermeiros. Todos os outros estão a apoiar esses com medidas sociais e políticas, não bélicas e o discurso dos líderes políticos devia ser esse: estamos a cooperar uns com os outros para apoiar os que trabalham no terreno, para que possam fazer o seu trabalho, que reverte a nosso favor.

Não será aceitável que no fim da crise se envie essas pessoas para casa com muitas palmas de heróis e umas medalhas de consolação e sem nenhuma mudança naquilo que ficou exposto como uma má organização social e política e uma má gestão dos recursos.

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