Andava à procura de uma receita de soufflé de peixe com espinafres, muito boa, que fazia frequentemente quando o meu filho era pequeno, mas já não faço há muito tempo e fui ao livro que tem a receita. Não tenho muitos livros de cozinha mas os que tenho não os largo. Os livros de cozinha antigos são como os dicionários antigos: vamos lá encontrar receitas que já não se encontram em lado algum, muito menos na internet ou, quando se encontram, estão adulteradas ou têm imagens a substituir, mal, as explicações. Algumas receitas que faço e saem sempre bem são deste livro.
O livro tem quase oitocentas páginas de receitas: tradicionais portuguesas; portuguesas com alterações de melhoramentos, receitas francesas (tem colaboração de chefes franceses), conservas, licores, etc. O livro não tem data de edição, mas é a 9º edição de uma 1ª de 1950. Pela maneira como apresenta os tópicos é, quase de certeza, dos anos 60 ou início de 70. Por exemplo, aqui nestas duas páginas, onde se abre um capítulo com conselhos muito úteis (como evitar que o azeite fique rançoso ou o que fazer se pôs sal a mais na comida, etc.), a autora inicia-o com com advertências às senhoras: o que vestir para agradar ao marido, como é que o marido gosta de ver a esposa, que a cozinha é que alimenta o amor do marido 😁 que a arte da cozinha exige qualidades morais, etc. Também fala sobre as complexidades de saber cortar as velas (tem de haver velas na mesa) a uma altura correcta para não fazer sombras na cara dos convidados, saber o protocolo de quem se senta ao lado de quem, tendo convidados, o que fazer se não tiver muitas criadas ou até se não tiver nenhuma 😁 e, pior de tudo, o que fazer se não tendo criados, não tem sequer marido que a ajude a servir 😁
Aliás, o prefácio do livro não deixa dúvidas acerca de quem deve estar na cozinha, pois inicia-se assim, "Minha Senhora..." 😁 O marido não gosta de ver a esposa com uma nódoa no avental ou ver uma pega fora do sítio na cozinha. Uma senhora deve manter a aparência de frescura na cozinha -mesmo que o forno esteja a 220 graus e esteja a cozinhar há 5 horas. É lindo 😁
Enfim, os livros de receitas culinárias tinham o desplante de dar conselhos morais e matrimoniais às mulheres, o que mostra como o governo da casa e o 'lugar' das mulheres era importante na lógica da harmonia social patriarcal.
Bem, em vez de procurar a receita do soufflé de peixe tenho-me entretido a ler estas preciosidades 😁
No entanto, a autora (e os colaboradores) é excelente a explicar uma receita. Dado que o livro quase não tem imagens, são 800 páginas de texto, ela explica a receita de maneira pictórica, isto é, vai dizendo o aspecto que cada cozinhado deve ter em cada etapa do processo e todos os pormenores que pudessem levantar dúvidas, ela antecipa-os e esclarece-os. Seguimos à letra a receita do molho mousseline, por exemplo, e sai perfeito. Claro que tem outras receitas com 30 ovos que já ninguém faz mas, mesmo essas recitas, se temos alguma experiência em cozinhar, são editáveis e saem perfeitamente.
Não há dúvida que antes da vulgarização da imagem as pessoas eram obrigadas a desenvolver a linguagem e, com ela indissociavelmente o pensamento. Hoje-em-dia, vamos ao YouTube ver fazer porque quem explica não sabe fazê-lo, nem sequer tem linguagem para o fazer. E mesmo assim, é preciso procurar no YouTube quem saiba mostrar o aspecto que as coisas têm que ter em cada fase do processo, porque nem todos sabem fazer isso.
O livro tem páginas cruéis, como aquelas das receitas de lagosta - "pega-se numa lagosta e corta-se ao meio, ainda viva. Depois põe-se água a ferver com temperos tal e tal e deita-se a lagosta na água a ferver." Enfim, sinais dos tempos...