Mais ou menos por esta hora está uma pessoa da família, padre, a tomar o hábito de monge no convento da Cartuxa de Santa María Porta Coeli, em Valência, Espanha. Ele esteve aqui em Évora como noviço mas o convento já tinha poucos monges e muito velhos e acabou por encerrar e ele foi para o de Valência que ainda recebe noviços. Fez o noviciado, que é obrigatório para perceber-se se a pessoa se adapta àquela Ordem e vai hoje tomar o hábito.
Ele é da idade do meu irmão mais novo e eram amigos em crianças. Foi uma enorme surpresa para toda a gente quando, aos 18 anos, ele anunciou que queria ser padre e os pais tentaram que, pelo menos, adiasse a decisão até ser mais velho mas ele estava decidido. Ele é, era, uma pessoa muito, muito activa e embrenhado na vida da comunidade, da paróquia em que estava, que era grande. E assim de repente, anunciou que ia tomar o hábito da Ordem da Cartuxa que é uma Ordem de clausura e silêncio. Outra enorme surpresa.
Lembrei-me, depois, que tive uma conversa muito grande com ele, quando fui ver o filme de Philip Gröning, realizador de, O Grande Silêncio, que dá a conhecer o dia-a-dia dos monges da Grande Cartuxa, em Grenoble, a casa-mãe da Ordem. Ele queria ir ver o filme e como sabia que eu tinha ido ver perguntou-me. Lembro-me de dizer-lhe que o filme tinha sido uma surpresa porque pensava que ia ser difícil estar num cinema, com outras pessoas, quase três horas em silêncio (o filme é quase todo silencioso, como é evidente) mas que não foi e ao contrário do que supunha, a vida dos monges é uma vida alegre. E lembro de discutir com ele por defender que já não estamos na Idade Média onde ir para um convento era um tipo de vida cristã e agora, parece-me que é uma fuga do que é difícil, pois difícil é a pessoa viver no meio dos outros, neste mundo actual, e dedicar a vida ao serviço dos outros. Fechar-se num convento é virar as costas. Lembro-me de ele me dizer que eu não percebia o chamamento da oração. Isso é completamente verdade, embora perceba muito bem a atracção do silêncio contemplativo. Gostava muito de poder passar 15 dias por ano num convento, destes enfiados no meio de uma Natureza onde se tem uma experiência imersiva, num espaço meditativo, de reflexão, uma espécie de limpeza da mente que, calculo, potencie a produtividade.
Quer dizer, do que vi nesse filme, aquilo é uma vida para uma pessoa que tem um espírito contemplativo, que tem uma ligação profunda à Natureza mas, tirando a parte de viver quase sempre em silêncio, que deve ser difícil, a vida deles não é um peso e eles são pessoas alegres e bem dispostas. Enfim, lembro-me termos tido uma conversa grande sobre a Ordem e esse tipo de vida mas nunca imaginaria que passados anos ele decidisse enveredar por essa vida de clausura e silêncio. É que ele ainda é novo, é saudável e isto significa viver décadas naquela clausura...
Imensa gente da família foi lá a Valência porque já agora é difícil falar com ele porque só poucas vezes por ano pode falar com a família e em horas marcadas e reguladas, então quando tomar o hábito ainda vai ser mais difícil. Mandaram-me fotografias dele e da cela onde vive. Raparam-lhe o cabelo, está muito magro porque andam imenso nas montanhas. A cela é uma coisa despida e fria, mesmo. Mas ele parece feliz.
É claro que sendo a religião católica um clube de pilinhas, as mulheres não podem assistir a esta cerimónia no convento, que é só para pilinhas. Amanhã é que há uma missa aberta onde todos podem ir e ele está disponível todo o dia. Uma espécie de despedida do mundo.
É difícil perceber uma decisão destas de passar o resto da vida quase sempre em silêncio, isolado horas por dia na cela ou no pequeno jardim, um eremitério, que cada cela tem à frente. É que a ordem da Cartuxa é uma ordem de eremitas, é dura e austera e ele era uma pessoa tão faladora, tão activa. É uma grande decisão que deve ter implicado uma luta interior importante. De facto, como dizia o poeta grego, cada pessoa é um universo infinito.
O filme está no youtube:
O convento, em Valência, Espanha. Vê-se, do lado direito, uma fiada de celas, cada uma com o seu jardinzinho à frente. É onde os monges passam grande parte do dia, em oração contemplativa.
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