Intitulado, Guerra(s) e ética(s)
A começar pelo fim e recuando (mas não como o exército de Putin).
Penso que se progrediu e bastante nos bens éticos e humanistas. Basta ver que há vinte ou trinta anos era impensável que os países se unissem quase todos na condenação de uma guerra arbitrária e chauvinista. Também, hoje-em-dia, mata-se e morre-se menos nas guerras porque a tecnologia permite ser mais rigoroso nos alvos e porque as guerras são mais pequenas. Acontece que se andou mais rapidamente na tecnologia e há armas com um poder de destruição que não havia, mas por isso mesmo os governantes, mesmo os déspotas hesitam muito antes de usarem as suas armas mais eficazes. As populações já não aceitam com resignação guerras e atrocidades cometidas em seu nome. Protestam, fazem pressão. Portanto, parece-me que existe uma consciência ética das relações internacionais que não havia e uma consciência de sermos, num certo sentido, cidadãos de um mesmo e único mundo partilhado e não apenas de nações particulares. Temos organizações globais assentes em princípios éticos. Tentamos ser mais justos, temos consciência das descriminações, das desigualdades, preocupamo-nos com os direitos das pessoas, das populações, dos animais. Nem sempre com eficácia e muitas vezes com cinismo e hipocrisia, sim, mas há avanços significativos, reais.
3. Trago aqui à colação um triste momento protagonizado pelo Presidente francês, (...) Macron disse que «vinte anos após a proclamação da nossa Carta dos Direitos Fundamentais, […] gostaria que pudéssemos actualizar esta Carta, em particular para ser mais explícita quanto […] ao reconhecimento do direito ao aborto». (...) o aborto - imagine- se! - como direito humano! Onde pára esta deriva que viola os alicerces da condição humana? E o que se seguiu depois desta ignominiosa declaração? Muito pouco, quase nada. Por inacção, indiferença, cobardia, acomodação. Silenciamentos significam mais do que desinteresse.
A Carta dos Direitos Humanos está fundada no princípio, kantiano, de que o ser humano é um fim em si mesmo, sendo por isso dotado de autonomia; liberdade de auto-determinar-se; faz parte da mesma Carta o direito à saúde e à proteção da saúde. A saúde define-se como um bem-estar físico, mental, social. Ora, uma gravidez indesejada (e as razões podem ser muitas) pode ser, e é, causa de mal-estar psíquico e social para as mulheres (e muitas vezes também físico), sendo que obrigá-las a levar a gravidez de meses até ao fim, a passar pelo parto e pelas consequências físicas, psíquicas e sociais da maternidade, não só é uma grande violência (física, psíquica e social), como fere os seus direitos humanos fundamentais de autonomia, auto-determinação e direito à saúde e à proteção da saúde. Retira-lhes a pertença à condição de ser humano enquanto fim em si mesmo e transforma-as em meios, instrumentos reféns dos interesses e ideologias de outros, sem direito, nem sequer à sua saúde (do seu bem-estar físico, mental e social), o que perfaz uma condição de servidão. Em nenhum artigo da Carta se declara que o embrião deve ser considerado como pessoa de pleno direito e com prerrogativa de retirar às mulheres, a autonomia e auto-determinação transformando-as em instrumentos reféns do interesse de outros e em seres sem direito à saúde e à proteção da saúde. De maneira que não me parece nenhuma ignomínia considerar a interrupção da gravidez como um direito humano fundamental. A punição das mulheres por exercerem os seus direitos de auto-determinação (autonomia) e de proteção da sua saúde (do seu bem-estar físico, mental e social) é que me parece uma ignominia e a obrigação de levarem a gravidez indesejada até ao fim, uma tortura. A tortura, como alguns defendem, tem como fim o reconhecimento da impotência do indivíduo sobre a sua própria pessoa, a sua liberdade de se auto-determinar e a destruição do mundo normativo de autonomia em que se julgava. E isso é que me parece ignominia maior no que respeita aos direitos humanos.
(continua)