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February 28, 2024

Uma entrevista muito interessante e importante



Para quem quer entender as transformações na comunidade cigana e os benefícios que há, para toda a sociedade, em ajudar as raparigas a emanciparem-se pela educação. Elas têm hoje outras expectativas e a educação escolar é um meio privilegiado para induzir essa lenta, mas irreversível, transformação de mentalidades.


Portuguesas ciganas. “Houve uma mudança que não vos passa pela cabeça”



Sónia Matos, presidente da Associação de Mulheres Ciganas Portuguesas, diz que “não se pode pedir ao discriminado para se colocar dentro de uma sociedade que não o aceita”

Ana Cristina Pereira (texto) e Daniel Rocha (fotografia)

Com quatro outras mulheres, no virar do século Sónia Matos (n. 1975) fundou a primeira associação de mulheres ciganas em Portugal. Nesta conversa, lança luz sobre a mudança que vê acontecer dentro da população cigana e que é muitas vezes invisível a quem está de fora.

Quando nasce uma menina numa família cigana, qual é a expectativa?
Fazer um bom casamento. Com 13 anos, eu já tinha saído da escola. Ficava com três irmãos. A minha mãe chegava e tinha a casa arrumada e o almoço feito. Agora já começamos a ver jovens no 9.º ano. Temos quase 40 licenciados [a maior parte mulheres]. Quando eu era criança, as meninas não passavam do 1.º ciclo.

A saída da escola foi conversada?
Aquilo era tão natural que nem havia conversa. Na nossa cultura, é desde cedo incutida a ideia de que o papel da mulher é aquele: esposa, mãe, dona de casa. Ainda nos dias de hoje esse é o papel esperado. O pilar da cultura cigana é a mulher.

É uma cultura patriarcal assente na “honra” da mulher...
Por isso muitas meninas são retiradas da escola. Os pais receiam que, na adolescência, no contacto com o outro, gostem de algum menino que não é da comunidade cigana. O cuidado com a mulher é o cuidado da virgindade. Isso não permitia que a mulher continuasse o seu percurso. Hoje, como disse, os tempos estão a mudar.

Qual o maior motor dessa mudança?
O Rendimento Social de Inserção (RSI) obrigou os técnicos a desenhar planos de inserção para pessoas ciganas. Além das crianças, houve muitas mulheres que voltaram à escola já sendo casadas, mães, avós. Foi isso que me proporcionou ser quem sou.

O RSI foi o seu álibi?
Eu disse à assistente social que queria estudar e trabalhar. Pude chegar a casa e dizer ao meu pai: “Tenho um contrato; há esta ajuda cá para casa, mas preciso de desenvolver este trabalho.” Fiz um curso de costura. E um curso de mediadora sociocultural. Hoje estou na universidade. Estou a fazer a licenciatura em Educação Social.

Foi no curso de mediação, promovido pelo Centro Europeu de Formação e Estudos sobre Migrações, que nasceu a ideia de fazer a Associação de Mulheres Ciganas Portuguesas (Amucip)?
Sim. Tínhamos um módulo sobre cidadania e o formador começou a trabalhar essa ideia em nós. “Vocês sozinhas não conseguem ter voz, mas, se formarem uma associação, é diferente.” Em 2000, assim que terminamos o curso, formamos a AMUCIP. Éramos as primeiras mulheres ciganas a trabalhar fora da família. Uma mulher viúva e quatro mulheres solteiras.

Fugiam ao papel esperado…
Fugíamos ao esperado na comunidade. Tivemos órgãos de comunicação social a publicar notícias a falar em revolução. Na feira, o meu pai foi rodeado por dez ou 15 homens que lhe perguntaram quem era eu para falar em nome de uma comunidade.

Tiveram de afirmar conformidade com a tradição...
Foi um choque. A sociedade atirou-nos para a arena. Éramos convidadas para ir a colóquios, seminários, vários tipos de encontros falar sobre a cultura cigana, sobre o nosso modo de vida. Eu sentia-me observada como um macaco raro numa jaula. Eu era rara para a sociedade maioritária e era rara para a comunidade cigana.

Como venceram as resistências na comunidade?
Dando o exemplo. O que nos deu alento para continuar foi o facto de todas nós termos ido ganhar experiência trabalhando por conta de outrem em entidades distintas. Eu fiquei no Centro Paroquial da Arrentela a trabalhar como auxiliar de acção educativa (não podia ser contratada como mediadora cultural porque há 25 anos que esta profissão anda a ser trabalhada para ser reconhecida, mas ainda não foi). Trabalhei lá 18 anos. Trabalhava para a Amucip em regime de voluntariado. Há cerca de cinco anos, larguei o meu trabalho e decidi viver à maluca. Estou efectiva na Amucip, o que não me dá estabilidade. Os projectos acabam e eu continuo a trabalhar em regime de voluntariado. Se largo, vai tudo por água abaixo.

Começaram pelo abandono escolar. Esse ainda é o grande combate?
É. A mentalidade só se altera à medida que a situação se vai alterando em redor. O pensamento típico na comunidade cigana ainda é: precisamos da escola para aprender a ler e a escrever, para nos desenrascar, para tirar a carta de condução. Muitos acham que não vale a pena estudar porque ninguém lhes vai dar trabalho. Mas eu, que estou dentro, consigo visualizar como a comunidade se começa a desenvolver e como a escola é importante. Muitos perceberam que aqui não conseguem sobreviver e vão para Inglaterra trabalhar nas fábricas e sabem a falta que lhes faz o inglês.

As estatísticas mostram um aumento progressivo de crianças nas escolas: quatro vezes mais em 2018/2019 do que em 1997/1998...
Tínhamos feito um grande progresso. Com a pandemia, acho que houve retrocesso. Durante um tempo, as feiras terminaram. Houve uma grande viragem. Muitos homens estão a trabalhar em TVDE [transporte individual de passageiros em veículo descaracterizado]. E muitas mulheres passaram a vender online. As vendas vão até à meia-noite, 1h00. Depois, têm de organizar as encomendas para pôr no correio no dia seguinte. E há crianças que acompanham esse ritmo.

Tem dados novos ou é uma percepção?
É a percepção que tenho nas escolas onde temos trabalhado. As crianças voltaram a habituar-se a estar em casa. As famílias habituaram-se a ter os filhos em casa. Umas, com menos conhecimentos, têm receio que as crianças apanhem vírus, bactérias, doenças. Houve muitos pais que aderiram ao ensino doméstico.

Não é adepta do ensino doméstico?
Não. Mais uma vez, estamos a fechar a comunidade no seu buraco, na sua zona. Um dos objectivos da escola é a socialização. É na partilha com o outro que crescemos. Custa-me um bocado. Também vejo famílias com conhecimentos a pedirem para os filhos estudarem em casa. Isto de ensinar igualdade de género não lhes parece bem.

A igualdade de género ainda gera polémica?
As coisas mudaram, até por causa da sedentarização [que acelerou após o 25 de Abril]. Quando criamos raízes num espaço, temos mais possibilidade de nos desenvolvermos. Mas sou realista. Estamos no século XXI, a mulher portuguesa provou que é capaz de fazer qualquer trabalho e continua a haver desigualdade em relação aos homens.

Nas comunidades ciganas há mais abandono escolar precoce, mais casamento precoce, mais maternidade precoce, mais pobreza
Tudo está ligado. Sabemos o que é preciso fazer. Está provado que os mediadores são essenciais. Quantos há? Uma escola TEIP [Territórios Educativos de Intervenção Prioritária] pode contratar mediadores. Quando se fala nisso, dizem que não vão abdicar de uma psicóloga ou de uma assistente social para ter um mediador cigano. No ano passado, a Amucip conseguiu ter um curso com dez mulheres. Uma facilitadora foi integrada numa escola, através da Câmara do Seixal. A dona Vitória tem 53 anos e é viúva. Os pais pensam: ‘Está lá a tia Vitória e deita-lhes o olho.’ É nestas pequenas coisas que a mudança se vai fazendo.

O mercado de trabalho continua difícil?
Não há empregabilidade para a comunidade cigana. Ainda há pouco mandei uma mulher para uma entrevista num hotel. Estava tudo acertado. Viram-na, já não quiseram. Não se pode fazer uma integração quando o outro lado está fechado. Não se pode pedir ao discriminado para se colocar dentro de uma sociedade que não o aceita.

Tem uma preocupação especial com as viúvas?
São muito mais vulneráveis. A mulher é sempre filha de, mulher de, viúva de. As coisas estão a mudar. Muitas já não cortam o cabelo, não fazem o luto que faziam. A dona Vitória é um bom exemplo. Mostra que se estudarmos e evoluirmos conseguimos arranjar uma vida melhor. Se antes tinha 60 mulheres a pedir ajuda, agora tenho muitas mais.

Em que estado chegam?
Chegam a dizer que não sabem fazer nada. O nosso trabalho também é ajudá-las a reconhecer as suas capacidades e encaminhá-las. Uma das mulheres que terminaram o nosso curso de facilitadoras está agora integrada num curso do Instituto de Emprego e Formação Profissional. Vai sair com um curso de auxiliar de acção educativa e o 12.º ano. Isso deixa-me muito feliz. Tenho a câmara a dizer que tem a perspectiva de integrar mais duas facilitadoras em duas escolas. Temos de mostrar que é possível. Com escola a gente vai lá. Com mais dificuldade, mas vai. Foi assim que a comunidade africana fez.

Sonhar é importante?
Sim. Há muita discriminação. A comunidade fechou-se imenso. Tem dificuldade em se abrir. Tem de perceber que é através da escola que consegue ter uma vida melhor.

O teste de virgindade continua a ser uma prática?
Hoje a maior parte dos jovens não se casa, junta-se e separa-se com facilidade. Hoje os casamentos estão muito escassos, mas sim. Havendo casamento, a prova de virgindade mantém-se.

A associação nunca assumiu uma posição sobre isso?
Não, nunca. É a nossa cultura. Temos um livro com testemunhos de mulheres mais velhas que dizem que foi a maior honra da vida delas. Encaram a prova de virgindade como uma honra que entregaram ao pai, à família. São tradições.

E a violência doméstica? Também não tem estado no caderno de encargos das associações ciganas….
Há associações que começam a ter projectos nessa área. Existe. Algumas mulheres sofrem maus tratos, mas já não é como antes. Nós temos as leis de apaziguamento. Chamamos os homens mais velhos [para mediar]. O que fazem? Ouvem as partes. Podem dizer: “A tua mulher está arrasada. Tu andas numa vida desgraçada, tens vícios. Ela vai para casa do pai dela. Ao fim de seis meses, a gente vem saber como estás. Se estiveres ajuizado, a tua mulher volta. Se não, ela mantém-se em casa do pai dela.” Ele é obrigado a aceitar. A mulher pode acabar com o casamento. O homem, não. O homem só pode acabar com o casamento se a mulher fugir com outro.

Os casos ficam fora do radar da justiça...
Também há muitas que recorrem à justiça, mas a justiça não funciona. É muito difícil funcionar nestes casos.

Aguarda-se a nova estratégia nacional de integração das comunidades ciganas. O que gostaria de ver plasmado nesse documento?
Gostava de ver o que nós e outras associações ciganas solicitamos. Solicitamos a aprovação do estatuto de carreira do mediador, a colocação de pelo menos 150 mediadores em escolas, a inclusão da história e da cultura cigana nos manuais escolares, o alargamento do programa de bolsas Roma Educa [destinadas a apoiar alunos do 3.º ciclo e no secundário]... São medidas como essa que proporcionam mudança. Também solicitamos estudos. Precisamos de dados. Podem dizer que o nosso país não permite catalogar as pessoas, a lei não permite, mas eu vou ao hospital e sou catalogada.

Houve esse debate antes dos censos de 2021 e os representantes da comunidade cigana foram contra…
Fomos contra porque estávamos a viver e continuamos a viver numa democracia muito coxa. A qualquer momento, vai lá para cima um louco que vai pegar nesses censos e faz a ciganalândia.

É esse o medo?
É, é esse o medo. Podem utilizar estes dados para bem, mas também para mal. A experiência que temos não tem sido nada boa. Houve um despertar para a política. Noto maior interesse, mas é uma população com uma escolaridade muito baixa.

Todo o seu discurso é sobre mudança...
Houve uma mudança nestes 23 anos que não vos passa pela cabeça. Vejo mulheres a ir sozinhas para a feira. Pegam na carrinha e vão. Eu não andava de transportes sozinha. A minha mãe não me deixava de forma nenhuma.

Já anda?
Já. Tenho 48 anos, um filho de 14 e uma filha de 8.

Hoje considera-se feminista?
Eu não entendo bem o que é ser feminista.

Ser feminista é defender igualdade de direitos e de oportunidades entre homens e mulheres...
Então eu sou uma grande feminista. Sou uma revolucionária. Até nasci em 1975.