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August 02, 2025

Sofismas, sofismas

 


Há assuntos que evito discutir até ter mesmo de ser, como o aborto (não, ninguém sabe o que é a vida, nem quando começa, é preciso admitir o dilema moral e fazer compromissos) ou o conflito israelo-palestiniano. Se há quem julgue que existe uma forma clara de definir de que lado está a razão, nem vale a pena começar a conversa. Não há nenhuma clareza moral nestes temas.

JMT Publico


Há assuntos que evito discutir (...) como o aborto (não, ninguém sabe o que é a vida, nem quando começa (...) 
Nesta frase vejo cinco pressupostos postulados como verdades, três explícitos, dois implícitos:

Explícitos:
1. A discussão do aborto tem de fazer-se em torno da discussão de definir a vida;
2. Quando não se sabe definir com rigor um tema não vale a pena discuti-lo.
3. Ninguém sabe quando começa a vida;

Implícitos:
1. As mulheres não têm de ser consideradas na questão da vida;
2. Não se pode acabar com uma vida;


Quanto aos explícitos, é óbvio que a discussão do aborto não tem que fazer-se em torno da definição rigorosa de vida. 
Uma definição é uma atribuição de características essenciais e exclusivas, em abstracto, quase ou mesmo  impossível de fazer quando saímos do domínio da matemática, da geometria e da física, dado que os seres têm sempre características comuns com outros seres que pertencem a outros grupos. 
Por exemplo, muitas vezes, para que os alunos do 10º ano percebam o dificuldade em definir e, portanto, a dificuldade de sabemos ao certo o que são as coisas bem como a necessidade de prudência nas afirmações sem reflexão, peço-lhes para me definirem uma cadeira, partindo do princípio que nunca vi uma cadeira e que nem nunca ninguém alguma vez me disse o que era e como era. 
Dizem-me coisas como, 
'serve para sentar'. 
-Ah, é um sofá? 
Não, dizem eles, 'tem pernas'.  
-Bem, o meu sofá tem pernas...  
'Mas é dura e tem um tampo'. 
-Ah, como um banco? 
'Não, não, tem um encosto' 
-Ah, como um banco do jardim? 
'Não, põe-se dentro de casa' 
-Ah, como uma poltrona? 
'Não, tem que ser dura' 
-Ah, o que define uma cadeira é ser dura? 
Não... 
Evidentemente que, para surpresa deles, não conseguem definir uma cadeira com rigor porque todas as características que vão dizendo pertencem também a outros objectos. No entanto todos sabemos o que é uma cadeira e podemos discuti-la. Definir seres vivos é muito mais complicado que definir objectos físicos.
Portanto, a discussão do aborto não tem que ser à volta da definição rigorosa de vida, pois se fosse necessário ser capaz de definir as coisas com rigor para discuti-las e tomar decisões pouco fazíamos - o que é ser-se humano? O que é política? O que são princípios morais? O que é a ética? O que é educação? O que é a justiça e mais um milhão de coisas, já que a maioria das coisas da nossa vida não têm uma definição clara: daí a necessidade de discussão e consenso - ou votação. Se tivessem uma definição rigorosa e clara, como por exemplo, a molécula de hidrogénio, não era necessário, nem discussão, nem consenso. 

Quanto a ninguém saber quando começa a vida, isso não impede que se saiba como se forma, o que é um embrião e as suas características, quando e como se forma o feto, as várias etapas da formação, quando tem um coração com todas as estruturas formadas, quando começa a sentir, etc. 

A ciência tem definidos critérios para responder a essa questão, que não são aceites, sobretudo pelos religiosos por motivos de dogma. Portanto, é por não os aceitarem que não os querem discutir e não por serem indiscutíveis.  

Implícitas ficam as ideias de que (1) as mulheres não são consideradas na questão da vida e que (2) não se pode acabar com uma vida;

(1) quando diz que não se sabe definir a vida e quando começa a vida, não especifica de que vida está a falar, mas todos percebemos que não está a referir-se às mulheres, mas aos embriões ou fetos. Nem lhe passou pela cabeça considerar a vida das mulheres. 
Porém, as mulheres também são vida, são vida consciente, são vida humana formada, com autonomia e liberdade. Não são vacas incubadoras. Pois, mas na questão da sua própria vida e saúde, não são são sequer consideradas. São um não-assunto.

(agora lembrei-me do artigo anterior onde aquele senhor que o escreve diz que o mais importante é aprender economia porque é daí que vem a liberdade LOL... talvez se não fores mulher porque sendo, a tua vida vale zero e nem sequer é considerada nas questões que põem em causa a tua vida, a tua saúde e a tua liberdade - não sei de que lhes serve saber de economia se não têm igualdade de tratamento de direitos humanos perante a lei)

(2) Não se pode acabar com uma vida, está implícito no argumento de não se saber quando começa a vida ou definir o que é. Porém, os que dizem não poder acabar-se com uma vida, aceitam perfeitamente que se acabe com vidas na guerra. E quando argumentam, 'mas um bebé é inocente', bem, em primeiro lugar um embrião e um feto não são um bebé e dizer que são é obscurantismo científico e em segundo lugar, na guerra morrem imensos inocentes, bebés e não-bebés e isso não levanta nenhum problema moral aos que defendem a proibição do aborto. E a maioria, não tem problemas em admitir matar alguém que os ataque e ponha a sua segurança ou vida em risco. Mas isso é tirar uma vida. É em auto-defesa? Não deixa de acabar com uma vida para preservar a sua. A IVG também é feita em auto-defesa - defesa da saúde, da liberdade e da vida da mulher. Muitos anti-aborto até são grandes defensores da pena de morte. Portanto, esse argumento de não se poder acabar com a vida é hipócrita e contraditório com outras crenças que as mesmas pessoas sustentam sem nenhum problema.

(...) é preciso admitir o dilema moral e fazer compromissos) (...)
Aqui temos o pressuposto de que, onde há dilemas morais não se pode fazer escolhas. No entanto, a nossa vida é passada a fazer escolhas onde há dilemas morais: 
'prejudico este grupo de cidadãos para investir naquele outro?'; 'dou asilo a um indivíduo que desconfio que possa vir a pôr em causa a nossa segurança?'; 'deixo este violador sair em liberdade correndo o risco de que possa vir a fazer mal a outras?'; 'não tenho dinheiro para todos: sacrifico os alunos para salvar os doentes ou sacrifico os doentes para salvar os alunos?'; 'faço aqui a barragem e mato duas aldeias ou deixo as aldeias e carrego água com camiões sisterna perdendo dinheiro?'; 'ponho o dinheiro a render para ter uma segurança para os filhos ou gasto-o numas férias para criar memórias de família?'... isto não tem fim... milhões de vezes escolhemos e precisamos escolher e não há compromisso nenhum. O que ele chama compromisso neste caso significa ordenar às mulheres que se sacrifiquem para ele acalmar a sua ansiedade de crente.

(...) Se há quem julgue que existe uma forma clara de definir de que lado está a razão, nem vale a pena começar a conversa (....)
O próprio autor do artigo enunciou, não um, mas vários pressupostos como verdades, logo, assume que tem a razão, mas critica quem julga ter razão em questões morais. Não se deu conta da sua contradição.