January 06, 2025

“Hoje tem-se menos direitos quando se compra um imóvel do que uma torradeira”

 

A lei que temos prejudica gravemente as pessoas que compram um imóvel (a maior compra da sua vida) e foi mudada para beneficiar os grandes fundos de especulação imobiliária. "Estamos a regredir na desburocratização do país" e o maior problema que temos é a falta de recursos humanos. Uma entrevista muito esclarecedora com o bastonário da Ordem dos Notários


“Hoje tem-se menos direitos quando se compra um imóvel do que uma torradeira”


No início do terceiro mandato como bastonário dos notários, Jorge Batista da Silva critica o regime que permite que as casas sejam vendidas sem licença de utilização e fala dos problemas da Justiça.

Mariana Oliveira

Notário há 18 anos, Jorge Batista da Silva esteve entre 2009 e 2011 na respectiva ordem como vice-presidente. Em 2017 regressou como bastonário e no mês passado tomou posse para um terceiro mandato que se prolonga até 2028. Nesta entrevista fala da deterioração dos serviços de registo, do que falhou quando os notários ficaram responsáveis pelos litígios nas heranças e critica o regime que passou a permitir que as casas sejam vendidas sem licença de utilização. “Foi criado foi um regime altamente enganoso que apenas veio beneficiar os fundos que ficaram com os imóveis decorrente da crise da troika”, sustenta.

É um dos responsáveis mais antigos nas ordens da Justiça. Como olha para a actual equipa ministerial?
Já passei por seis ministros da Justiça. Vejo nesta equipa um conhecimento maior do que são os problemas do dia-a-dia das pessoas. Um dos grandes problemas da Justiça tem sido esta tendência que as coisas se resolvem com uma cerimónia, com um pacto da Justiça, com meia dúzia de reuniões. Todos ficam contentes porque aparecem na fotografia. Acordamos que vamos mudar o mundo. Mas depois o impacto na vida do cidadão é pouco visível. Esta ministra da Justiça tem a vantagem – houve quem lhe apontasse como desvantagem – o facto de ser alguém mais ligado à resolução do problema das pessoas como advogada. E, nesse sentido, é muito menos académica, muito mais prática. Tem tentado fazer de uma forma, pouco visível ainda, revisitar vários diplomas e tentar perceber como se conseguem resolver os problemas das pessoas.

Quando o notariado se privatizou, em 2004, existiam pouco mais de 200 cartórios notariais. Hoje são perto de 500...
Neste momento estão abertos 487 cartórios. Está previsto na lei que exista um cartório em todos os concelhos do país. Isso ainda não foi feito. Faltam-nos algumas ilhas, nomeadamente nos Açores, o mais preocupante, e algumas partes do interior. Nos últimos sete anos abrimos mais de 100 cartórios e alteramos a vida daquelas populações. Os serviços de proximidade, principalmente no interior do país e ilhas, são absolutamente fundamentais porque as cidades estão a ficar desertas. Os próprios serviços públicos estão a fechar ou não têm recursos humanos. Nas conservatórias mesmo quando estão abertas no interior e ilhas já não têm recursos humanos para prestar os serviços mínimos. Numa lógica de complementaridade, propusemos e – espero que se vá fazer – os cartórios ajudarem as conservatórias ou outros serviços que precisem deles. Essa é a diferença entre a desertificação e a qualidade de vida das pessoas. Ninguém que esteja no interior do país deve ter que fazer 100 km para fazer uma habilitação de herdeiros num momento difícil em que morreu um familiar. Ou se precisa de enviar uma procuração, não tem de esperar que lá vá alguém uma vez por semana para ter um serviço essencial. Os cartórios estão abertos todos os dias úteis. E damos muita informação gratuita, a possibilidade de a pessoa entrar, vir ao balcão e perguntar. Este tipo de atendimento praticamente desapareceu desde a pandemia e precisamos desse atendimento para pessoas que são os mais vulneráveis. As pessoas com mais idade, as que padecem de iliteracia, mas também os estrangeiros, os imigrantes que precisam de ter acesso ao nosso direito, aos nossos conhecimentos. O digital é importantíssimo, mas a verdade é que nós temos que lidar com vários tipos de iliteracia.

As ferramentas digitais abriram outras possibilidades…
Hoje em dia, por exemplo, conseguimos que uma pessoa faça uma procuração em Cuba, no Alentejo, e essa procuração seja colocada no arquivo electrónico e possa ser utilizada passado uns segundos em Lisboa ou no Porto. Vemos a utilidade pelos milhões de certidões que já emitimos. As pessoas conseguem qualquer documento que esteja arquivado num cartório a qualquer momento. Pode ser um testamento, uma partilha, uma escritura de compra e venda. Com um atendimento presencial, mesmo quem não tem acesso às novas tecnologias - as pessoas esquecem-se que em Portugal temos quase 12% da população que nem acesso à Internet tem - consegue ter acesso a elas com a mediação de um notário. E nem sequer têm que se deslocar ao cartório. Há várias soluções de pagamento, nomeadamente por referência multibanco

Que outros projectos existem?
Este ano vamos dar o segundo grande passo que é disponibilizarmos às pessoas a possibilidade de terem quase o seu notário no telemóvel. Terem uma aplicação onde vão, para além de poderem consultar todo o seu histórico e terem acesso a um conjunto de documentação, poder agendar videoconferência com notários para tirarem dúvidas, fazerem as marcações, mas também chegarmos ao ponto de uma forma segura praticarem actos à distância. A lei que permitia dados à distância caducou, está a ser reavaliada. A Ordem defende claramente o seu direito a ter a sua plataforma de actos à distância, aliás o novo regulamento comunitário vai nesse sentido. Queremos fazer só determinado tipo de negócio. Não faz sentido nenhum fazer à distância uma doação, um testamento, que têm que ser actos absolutamente livres. E essa liberdade tem que ser aferida na presença de um notário. Não devemos colocar em causa a segurança jurídica em nome da simplificação

Enquanto foi possível os actos à distância eram frequentes?
Não. O regime caducou em Abril e o número foi residual, mesmo em número de pedidos. E o que tínhamos era para coisas muito simples ou coisas como uma procuração. Digo por brincadeira que comprar uma casa é como se fosse um casamento. As pessoas gostam de vestir o seu melhor fato.

Há um novo regime que permite que os imóveis sejam vendidos sem licença de utilização. Os notários são importantes para garantir que os compradores estão conscientes dos riscos que correm.
Tenho sido um crítico dessa lei. Criou-se um regime de compra de um imóvel – que é apenas o negócio mais importante da vida da maioria dos portugueses – em que o comprador, na prática tem menos direitos quando compra um imóvel do que quando compra uma torradeira. Por que o seu direito à informação é algo absolutamente ridículo face àquilo que existia. Nos anos 80 tivemos uma série de problemas em Portugal porque as pessoas compraram apartamentos que depois descobriram que não estavam licenciados. Alguns nunca foram licenciados por não terem condições. Criámos depois regimes como a obrigatoriedade da notificação da licença de utilização, da ficha técnica de habitação e os preâmbulos desses diplomas dizem que os criamos para proteger o cidadão consumidor na aquisição do negócio mais importante da sua vida. E, de repente, o legislador, ninguém percebe porquê – porque isto nunca foi objecto de discussão nos debates do Mais Habitação –, inventou um diploma, onde veio a suprimir a exibição da licença de utilização.

Porquê?
O primeiro argumento foi que as licenças de utilização tinham acabado e a verdade é que agora o que temos não é um processo de licenciamento como existia, mas uma comunicação prévia. Só que logo em sede de regulamento foram criadas as comunicações prévias que são feitas pelo promotor da obra. As câmaras precisavam de emitir um documento qualquer e emitem o recebimento da comunicação prévia exactamente com a mesma terminologia de uma licença. Exactamente igual. Isto porque os bancos quando financiam um imóvel não querem financiar um imóvel não licenciado, necessitam de alguma garantia de que corre um processo de licenciamento. Ou seja, o teste do algodão, que é a aplicação prática, correu logo mal. E então legislador criou por via regulamentar - o que até é de constitucionalidade duvidosa - um novo mecanismo que, na verdade, é o recuperar da licença. E isso é o que garante efectivamente que aquilo que estamos a comprar não vai ser demolido por estar ilegal. Depois o legislador diz-nos que na escritura temos que fazer uma advertência completamente ridícula: o prédio pode não dispor de títulos urbanísticos de licenciamento. Mas isso é absurdo. Informar as pessoas não de que o imóvel tem ou que não tem esse título, mas que pode não ter.

O que faz na sua prática para proteger quem compra?
Foi emitida uma orientação pela Ordem no sentido de ficar claro se o prédio tem ou não licença. Isto é fundamental. E se o prédio não tem licença informar a pessoa que, se alguma coisa correr mal, ela é que que vai ter que licenciar o prédio. Dizer mesmo: se a casa não tiver licença pode mesmo ir abaixo. O grande argumento do legislador foi que temos muitas casas que precisam de ser licenciadas e que não podem ser transmitidas. Mas isso era uma excepção à lei. Se quero comprar uma casa para reconstruir, tudo bem. Não há problema nenhum. Éramos a favor disso. O que foi criado foi um regime altamente enganoso que apenas veio beneficiar os fundos que ficaram com os imóveis decorrentes da crise da troika. Todos sabem que foram executadas muitas hipotecas e havia muito crédito malparado que foi transmitido para os grandes fundos que adquiriam crédito malparado aos bancos, às vezes com descontos de 70 a 80%. Era preferível que os bancos tivessem permitido às pessoas que eram devedoras terem descontos de 70% nas dívidas. Mas tirando este aparte moral, a verdade é que esses fundos ficaram com milhares e milhares de imóveis. Ainda noutro dia noutro jornal um responsável desses fundos veio dizer que 2024 estava a ser um ano fantástico. Porquê? De repente, os milhares de imóveis que tinham que licenciar para poderem vender e colocá-los em condições para os cidadãos comprarem, puderam vendê-los livremente. Colocam à venda num qualquer site imobiliário e as pessoas, que estão desesperadas, compram. E com um desconto comercial muito reduzido. As pessoas não têm a noção de que estão a comprar um problema.

Isso parece a selva…
Ninguém diz a estes compradores: atenção, o imóvel que está a comprar o mercado valoriza-o por um preço muito inferior. A pessoa nem sequer tem noção que se, por exemplo, precisar de vender e se o comprador for recorrer ao crédito não vai conseguir obtê-lo. E não estamos livres do legislador mudar a lei, como fez no passado, e passar a exigir a licença de utilização e a pessoa já não consegue sequer transmitir o imóvel. Criamos uma lei que não resolveu problema nenhum de habitação, resolveu o problema de quem tinha imóveis não licenciados para vender e que passou a poder fazê-lo.

Há muito mais estrangeiros a comprar casas em Portugal?
Milhares de pessoas. Mas esclareçamos uma questão. Em Portugal temos um problema de habitação e temos imigrantes. E fazemos um raciocínio de 1+1=2 e associamos as duas questões. Mas é absolutamente falso. Em Portugal construíamos mais de 100 mil fogos e passamos a construir 7000 fogos após a saída da troika. Hoje, por ano, andamos nos 20 e poucos mil fogos. No período da troika, muitas construtoras fecharam e a mão-de-obra qualificada emigrou. Os imigrantes foram a salvação de muitos sectores da nossa economia e do interior do país. Trouxeram empreendedorismo à economia local. Claro que temos problemas graves de habitação nos grandes centros urbanos, onde onde já os tínhamos, mas passamos a ter mais. Não temos uma política pública de habitação. As cooperativas, por exemplo, eram fundamentais para a entrada dos mais jovens na primeira habitação. Acabamos com essa política. No interior do país, onde as pessoas fazem muito ainda a sua própria casa mas para comprar um terreno continuam a pagar uma taxa de 6,5%. Isentamos uma casa de 300 mil euros no centro da cidade, mas depois cobramos 6,5% de impostos por um terreno no interior do país.

Quanto às compras pelos estrangeiros…
Para os notários do Algarve, as coisas não mudaram muito, sempre tiveram muitos estrangeiros a comprar. No resto do país, começámos a ter primeiro uma procura de várias nacionalidades, principalmente em Porto e Lisboa. Por vagas. Tivemos cidadãos do Brasil, a época dos cidadãos da China, depois da França e agora a época dos cidadãos oriundos dos Estados Unidos. Os franceses têm aumentado consideravelmente. A grande mudança de paradigma é que essa realidade deixou de se concentrar em Lisboa e Porto para se expandir ao país inteiro. Hoje é normal um americano querer ir para um concelho de Bragança. Na Póvoa do Varzim, onde sou notário, antigamente ainda aparecia um estrangeiro ou outro que veio cá passar umas férias, gostou e comprou uma casa. Hoje tenho americanos, alemães, italianos, franceses, brasileiros, que compram casas e querem vir viver para cá, porque temos uma vida mais lenta que noutros países. Porque é mais acessível. Temos um sistema de saúde de que nos queixamos, mas que para eles é bom. Já nem falo dos Estados Unidos, onde o dinheiro do seguro de saúde dá para comprar uma casa cá.

Os notários convivem com a deterioração dos serviços na rede de registos (civil, predial, comercial, etc).
O Estado tem, neste momento, um problema grave nos registos. Começa a ter atrasos e pendências decorrentes da falta de recursos humanos. E isso torna os processos cada vez mais morosos. E variam consoante as zonas do país. As pessoas têm que esperar 60 dias para terem um registo de uma empresa. É tempo a mais. Nenhuma empresa pode ter a sua actividade parada à espera 60 dias da nomeação da gerência. Isto tem que acabar. Decorre da falta de recursos. Em segundo lugar os sistemas informáticos estavam obsoletos e isso origina a sua lentidão do sistema. O Instituto dos Registo e do Notariado vai ter um fortíssimo investimento este ano no âmbito do PRR, que espero que resolva os problemas informáticos. Em muitos períodos o sistema informático não consegue responder quer por picos de procura quer por falhas recorrentes. Espero que o investimento informático se resolva este ano. Mas há um problema maior: os recursos humanos. A média de idades nos registos é muito avançada. Cada vez se aproxima mais dos 60 anos e não é possível resolver este problema de um dia para o outro. Por isso devemos colocar os profissionais que lá estão a fazer registo e retirá-los de fazer procedimento. A casa tem que ser arrumada no sentido de voltar a fazer aquilo que é a sua principal função: registos. E tem de formar pessoas.

Falou em 60 dias, mas já ouvi falar em prazos piores.
Sessenta dias é o caso médio. Já tive demoras de 120 dias, de 150 dias. É uma questão de se ter azar, calhar numa conservatória onde os funcionários estejam de baixa. O sistema de registo é a base da nossa economia. As pessoas não têm percepção disso. Se quero criar uma empresa, preciso de uma certidão do registo comercial para provar que sou gerente da empresa. Se alguém falecer preciso da certidão de óbito, se alguém se quer casar precisa das certidões de nascimento e depois de casamento. Na pandemia enquanto as conservatórias fecharam as pessoas não se conseguiam casar nem divorciar. É preciso uma solução já. Com uma média de idades muito próxima dos 60, a formação de conservadores ou de oficiais de registos demora imensos anos. O concurso [para 58 conservadores e 240 oficiais do registo] que está a decorrer [desde 2023] ainda não acabou, nem se vê luz ao fundo do túnel. Mesmo que amanhã abra um concurso para 500 pessoas ninguém sabe quando é que aquelas pessoas vão entrar. Basta ter uma impugnação num tribunal administrativo. Temos aqui um problema sério que pode colocar em causa de forma estrutural o funcionamento e o investimento do país. Temos serviços de registos que fecham alguns períodos do ano. Não é possível ter um registos fechados. Há serviços que deviam estar a ser prestados pelos cartórios, como os casamentos e divórcios até porque faz parte da nossa base de formação. Uma empresa online que devia ser constituída na hora, hoje por vezes não conseguimos fazer em 10 dias e não é porque o notário não faz, é porque o registo não consegue ter o processo concluído. Estamos a regredir na desburocratização do país.

No final do ano houve problemas informáticos e greves nas conservatórias que causaram constrangimentos graves?
O final de ano foi especialmente difícil pois as constantes indisponibilidades das plataformas de registo comercial, predial e civil causaram enormes atrasos em alguns processos de constituição de empresa e em muitos casos até impediram que os negócios se fizessem em 2024, com prejuízo claro para cidadãos e empresas. Acresce que a greve de 15 dias realizada levou ao fecho de várias conservatórias e outras tiveram uma actividade muito reduzida com um impacto na actividade dos cartórios que, em alguns casos, estão dependentes destes serviços.

Em 2013, os litígios ligados às heranças, que eram dos processos mais demorados da Justiça, passaram a ser tramitados pelos notários. Mas as coisas não correram bem e hoje as pessoas podem escolher entre cartórios e tribunais.
A reforma do chamado processo de inventário correu mal por várias razões. As reformas têm que ser pensadas e feitas com tempo e a primeira coisa é dar formação às pessoas. Se nós queremos colocar notários, que normalmente decidem processos não litigiosos, em que as pessoas se entendem, a tratar de processos em que as pessoas não se entendem de todo temos que os formar para isso. A formação foi praticamente nenhuma. Esta reforma foi uma exigência da troika. Nada correu bem. Havia uma resistência muito grande dos advogados e solicitadores que também não colaboravam muito. Percebo a resistência. Nada no processo foi preparado. Não havia forma de nomear peritos. Não estava prevista a forma de fazermos quebras de sigilo. O próprio sistema de justiça encarou aquilo como um corpo estranho. Como é que um notário com 400 processos de inventário consegue ser rápido? É impossível. Se não se conseguia no tribunal não vai ser diferente no cartório, onde tem que se fazer mais uma série de coisas. O que se fez a seguir, já com a Van Dunem como ministra, foi os notários poderem escolher se queriam ou não tramitar processos de inventário. E o tribunal voltou a ter esta competência.

E como ficaram os processos que já estavam nos notários?
“Hoje tem-se menos direitos quando se compra um imóvel do que uma torradeira”
Erradamente ficaram lá até ao fim. Se os processos estavam a correr mal no cartório tinham que ir para tribunal. Neste momento, ainda estamos a acabar de tramitar processos antigos. Muitos não estão a aceitar processos enquanto não tiverem resolvido o que está para trás. Com isto entupiu-se os tribunais.

Mas continuam a entrar inventários nos notários?
Todos os dias. Mas 80% dos processos de inventário vão para os tribunais. Porque os notários não os aceitam de todo. E bem. Há processo de inventário que, pela sua natureza, nunca deviam ter vindo. Pelo número de pessoas, pela especial complexidade. A solução que vou propor a este ministério é darmos um passo em frente. É criarmos um novo tipo de processo de inventário simplificado. Muitas vezes a única coisa que está em causa é a avaliação dos bens. Não é necessário um processo de inventário ir a um juiz por causa de uma avaliação de bens. Mesmo em processos de alta litigiosidade é possível separar fases processuais. Outra coisa importante é garantir a interoperabilidade entre sistemas informáticos. As bases de dados estarem ligadas. Estar a pedir às pessoas para irem às finanças, buscar uma relação de bens não faz sentido. O notário consultava o património do morto e depois comunicava aos herdeiros o património que estava em nome do falecido. Não deviam ser os herdeiros a fazer a relação de bens, devia ser ao contrário. A reforma do inventário falhou claramente porque não houve formação, não houve plataforma informática adequada, não houve interoperabilidade… não houve rigorosamente nada do que era necessário.

Quando detectam negócios suspeitos os notários são obrigados a comunicá-los à PJ e ao Ministério Público. O que é fulcral fazer no combate à corrupção e ao branqueamento de capitais?
Andamos à volta das 500 comunicações anuais. Do ponto de vista formal, está tudo perfeito. Há um conjunto de entidades – notários, advogados, financiadores, conservadores, contabilistas – que têm um conjunto de obrigações e regras relativamente ao branqueamento de capitais. Mas não há uma formação conjunta e uniforme das entidades que estão a controlar os negócios. Os critérios variam. A ordem tem tentado promover formação com a intervenção do DCIAP [Departamento Central de Investigação e Acção Penal], da Polícia Judiciária, de advogados, de conservadores, já fizemos algumas em conjunto com o Instituto dos Registos e do Notariado. Tem havido esse esforço. Tem que existir uma política de formação transversal a todas as entidades. Para não andarmos aqui a achar que o vizinho do lado simplifica mais as coisas e não é tão rigoroso. Porque temos que fazer comunicação a duas entidades diferentes? Não faz sentido.

Não há uma plataforma informática para fazer isso?
Não. Enviamos por email. Depois há uma grande falta de feedback tanto da PJ como do DCIAP. Quando faço uma coisa que sou obrigado a fazer, a forma como melhoro, é se começar a ter feedback de uma forma quase mensal. E muitas vezes isto é feito anualmente ou no ano seguinte. A ordem está a desenvolver e vai disponibilizar este ano uma ferramenta informática que permite, por exemplo, ajudar os notários a detectar operações suspeitas. Coloco o preço, coloco a nacionalidade das pessoas, coloco uma série de factores e o sistema recomenda-me se devo comunicar ou não, se devo ficar com os documentos, se é uma operação altamente susceptível a branqueamento de capitais ou pouco susceptível. Este tipo de ferramentas tem que existir. Mas devia ser de toda a gente, não devia ser da Ordem dos Notários.

Fazia sentido que fosse feito pelas entidades que analisam os alertas. Melhor do que ninguém têm noção de quais são os critérios importantes, que fenómenos criminais estão a acontecer.
Vamos pensar nos sancionados, quando começou o conflito da Rússia e da Ucrânia. Na altura, houve algumas tentativas de cidadãos russos de fazerem operações. Não fazia sentido, por exemplo, as entidades obrigadas a comunicar recebessem alertas de que há uma tipologia de negócio que está a ser feita. Tenham atenção.

Tem falado também na multiplicidade de entidades.
Cada entidade trabalha por si. E há entidades a mais. Centralize-se tudo em duas entidades, no máximo. E, quando se criarem novas, criem-se departamentos em entidades já existentes. A melhor forma de desincentivar a corrupção é impedir que o corrupto beneficie do dinheiro alcançado com a corrupção.

A questão da perda do produto do crime ou o arresto preventivo de bens não são uma novidade, a antiga procuradora-geral falou muito nisso.
Há muito a fazer no momento dos negócios. Um exemplo: a lei obriga a que se insira na escritura a forma de pagamento. E escrevo lá que é um cheque e o seu número. Em Portugal não há nenhum mecanismo que verifique se aquele cheque foi depositado. Nenhum. Comunicamos a operação à Autoridade Tributária, às conservatórias para efeito de registo predial. Uma das formas de branquear capitais é, precisamente, receber imóveis sem pagar o preço. Se queremos abordar verdadeiramente o problema temos que falar sobre a criminalização do enriquecimento injustificado. Os tipos de crime já foram mudados ao longo da história. A sociedade enquanto um todo pode chegar à conclusão que a base da democracia está a ser minada por causa da corrupção. Enquanto sociedade podemos entender – e nada nos impede disso – que alguém ter mais de 250 mil euros injustificados é um crime. E que a não declaração daquele dinheiro constitui um crime. Não há nada que nos impeça. A lei de combate ao branqueamento de capitais diz-nos que não pode haver pagamentos superiores a três mil euros em numerário. É um valor demasiado pequeno. Andamos atrás do micro-crime quando nos recusamos a resolver os grandes crimes. E tomar uma decisão destas – digo isto como um absoluto defensor de direitos, liberdades e garantias –, e digo sem medo: faz sentido alterar a lei de maneira a criminalizar o enriquecimento injustificado com valores acima de 250 mil euros. Nada abaixo disso faz sentido. Para mandar uma mensagem definitiva às pessoas: a corrupção não compensa. A corrupção é um crime muito difícil de provar desde sempre. O corrupto fica dotado de meios de defesa muito superiores aos do próprio Estado. O corrupto tem melhores especialistas, tem melhores juristas, tem mais capacidade financeira de perpetuar os processos.


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