October 08, 2024

Assustador - dispositivos invasivos-controladores e deslumbramento com a tecnologia

 

O problema da tecnologia é começar nas mãos de pessoas como Musk, Zukerberg e quejandos, pessoas sem escrúpulos que só pensam em controlo de pessoas, poder e dinheiro e acabar a comprar políticos que também só pensam em poder, controlo de pessoas e boa vida.



O argumento em prol das leis de privacidade cerebral

As últimas décadas mostraram à exaustão que abraçamos a novidade tecnológica com pouca consideração pelos riscos; e que a privacidade não foi um factor decisivo, pelo contrário. 

João Pedro Pereira

Para mergulhar no tema desta newsletter, é útil um exercício prévio. Pense o leitor nos momentos em que se deparou com um avanço tecnológico que tornou realidade algo que antes lhe parecia a si impossível ou ficção científica.

Para leitores mais velhos, um desses momentos poderá ser a alunagem de 1969. Para outros, é provável que sejam avanços nas tecnologias de informação. Talvez um deles seja o momento em que pegou pela primeira vez num smartphone. Ou quando usou uma aplicação para conversar com outra pessoa sem que houvesse uma língua comum (aconteceu-me quando percebi que podia ter uma conversa com crianças que apenas falavam farsi, língua de que não sei uma palavra). Talvez outro seja o momento em que viu um carro a andar sem ninguém ao volante. Ou o espanto mais recente de conversar com um sistema informático capaz de escrever, falar e compor música, e que lhe respondeu quase como um humano.

Tiram-se daqui lições óbvias: o mundo muda de forma inesperada; o que parecia impossível acontece; e o impossível tornado realidade depressa se torna tão normal que não damos por ele.

Há poucos dias, a Califórnia aprovou uma lei para garantir a privacidade da actividade cerebral dos consumidores. Não é uma preocupação de ficção científica.

Ler e interpretar a actividade cerebral tem benefícios evidentes, especialmente na área da saúde. Permite a pessoas com problemas motores interagirem com computadores ou com objectos do mundo físico. A Neuralink, de Elon Musk, criou um implante cerebral que permitiu a um homem paralisado controlar o cursor do computador apenas com o pensamento. Também pretende criar um implante que dê capacidade de visão a pessoas cegas.

Por outro lado, a Neuralink é de Elon Musk. E, além disso, há usos mais preocupantes para a leitura de actividade cerebral.

Uma empresa chamada Brainbit comercializa uma fita que se põe na cabeça e que é capaz de registar alguma actividade do cérebro. Tem usos relativamente anódinos, como relaxamento e meditação. Mas outros dos usos que a empresa propõe são reveladores. A um deles chama "competição social" e a ideia é saber quem é a pessoa mais alegre numa sala de reuniões, ou quem está mais concentrado numa tarefa. Outra possibilidade seria publicar nas redes sociais o estado de espírito do utilizador. Há uma estranha ideia de usar a fita para decidir quem escolher numa aplicação de encontros (teríamos, portanto, um dispositivo a interpretar por nós aquilo que o nosso próprio cérebro quer). O "neuromarketing" também faz parte da lista.

Mark Zuckerberg, que começou a investir nisto há mais de cinco anos, apresentou agora o protótipo de uns óculos de realidade aumentada que se ligam a uma pulseira capaz de ler sinais do corpo do utilizador, incluindo sinais cerebrais. O protótipo já funciona, mas não está pronto para ser comercializado. Merece reflexão a possibilidade de uma empresa como a Meta vir a ler o que se passa no cérebro dos utilizadores

Terá sido essa a reflexão que passou pela mente dos legisladores californianos.

A nova lei define os dados neurais como "a informação que é gerada pela medição da actividade do sistema nervoso central ou periférico de um consumidor, e que não pode ser inferida através de informação não-neural." E determina que este tipo de dados passam a ter a mesma protecção que outra informação pessoal, como os dados bancários, informação de documentos pessoais, emails e mensagens de texto, ou informação étnica, religiosa e sindical

Não leio pensamentos, mas adivinho o de alguns leitores: isto é uma bizarria da Califórnia, o estado dos tecnólogos e dos futuristas. Não é.

A Califórnia é o segundo estado americano a tomar uma medida destas; o primeiro foi o Colorado, em Abril. Há exemplos de outros países. Em 2021, o Chile fez uma adenda à constituição para garantir a protecção da actividade cerebral dos cidadãos e da informação daí retirada.

A União Europeia está a estudar o assunto. Em Julho, foi apresentado um relatório encomendado pelo Parlamento Europeu, que aborda questões que vão da cibersegurança às implicações éticas. É exaustivo e de leitura algo fastidiosa. Mas tem passagens interessantes, como aquela em que os autores explicam o "neuro-encantamento": o "imenso poder de sedução dos dispostivos neurotecnológicos", associado à "elevada reputação das neurociências". O que se pode concluir da argumentação é que, se tivermos oportunidade de usar um capacete ou pulseira que registe a actividade cerebral, a maioria de nós irá fazê-lo.

As últimas décadas mostraram à exaustão que abraçamos a novidade tecnológica com pouca consideração pelos riscos; e que a privacidade não foi um factor decisivo, pelo contrário. Se não resistimos às redes sociais, quem iria resistir a "tecnologia que lê o pensamento"?

Os avanços nesta área estão a abrir caminhos que hoje nos parecem impossíveis. Pode a tecnologia vir a perceber e antecipar intenções? Vão os estados autoritários, já para não falar dos outros, resistir à ideia de ler a mente dos seus cidadãos? Teremos crimes de pensamento?

Isto, claro, é ficção científica. Como em tempos foram a ida à Lua, os carros que se conduzem sozinhos e os computadores capazes de conversas inteligentes.

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