December 02, 2023

Serviços jurídicos privados custam ao Estado 3,7 milhões por mês




(há dinheiro para tudo - pagar as professores é que não porque deslassa a sociedade)



Serviços jurídicos privados custam ao Estado 3,7 milhões por mês


Maioria dos contratos com sociedades de advogados são por ajuste directo, mesmo quando ultrapassam tecto máximo dos 20 mil euros. Firmas da Influencer não têm sido as que mais ganham.

Ana Henriques

Em meados de 2015, faltavam menos de seis meses para se tornar primeiro-ministro, António Costa insurgia-se contra o que considerava um risco para o interesse público: “O Estado não pode continuar a não ter recursos próprios nas competências jurídicas para a negociação de grandes contratos, tendo de recorrer, sistematicamente, à requisição, em outsourcing de escritórios de advogados. Isso fragiliza a protecção do interesse público e torna aqueles que servem momentaneamente o Estado mais permeáveis à influência, normal, da actividade que desenvolvem noutras circunstâncias para os seus clientes privados.”

Oito anos de governação socialista passados, sempre com António Costa ao leme, o cenário não se apresenta famoso face ao que disse o primeiro-ministro: nos primeiros 11 meses de 2023 Portugal gastou 41 milhões de euros em assessorias jurídicas externas e serviços similares, o que dá uma média de 3,7 milhões ao mês. É perto de 170 mil euros por cada dia útil, de acordo com a análise feita pelo PÚBLICO aos dados do Portal Base, onde são disponibilizados os contratos públicos.

A estes encargos, que incluem quer ajustes directos quer outro tipo de contratos, como concursos públicos,​ somam-se os ordenados dos profissionais do centro de competências jurídicas do Estado e os salários das centenas de juristas das autarquias.

As suspeitas levantadas pela Operação Influencer, de existirem sociedades de advogados a produzirem para o Estado peças legislativas à medida dos interesses de alguma clientela, parecem confirmar os receios levantados por António Costa, que antes de se tornar político a tempo inteiro também integrava uma sociedade de advocacia, por sinal a que agora defende o seu até aqui amigo Diogo Lacerda Machado, arguido neste inquérito.

As três firmas de advogados que surgem de alguma forma mencionadas na Influencer – a Morais Leitão, a Abreu e a PLMJ – não são as que arrecadaram os ajustes directos mais vultuosos nos últimos anos, embora ocupem lugares cimeiros nesse pódio. A Vieira de Almeida, em primeiro lugar, seguida da Cuatrecasas e da Sérvulo, encabeçam o ranking de ajustes directos celebrados de 2015 até hoje, e no qual ganham especial relevo, no caso das duas primeiras, os contratos de milhões destinados a assessoria jurídica e patrocínio judiciário do Banco de Portugal. Sempre sem concurso público.




Por algumas destas sociedades têm passado figuras importantes da política nacional, umas vezes como meros consultores, outras como sócios. Se António Vitorino já não integra a Cuatrecasas, Marques Mendes ainda figura como consultor da Abreu, em cujo Instituto do Conhecimento passou entretanto a colaborar o ex-ministro do Ambiente Matos Fernandes – contratação que estará de resto a ser investigada também na Operação Influencer. Na Morais Leitão pontuam entre outros João Tiago Silveira – também arguido nesta investigação – e Paulo Núncio.

Deputado durante mais de uma década e antigo ministro adjunto de Durão Barroso, José Luís Arnaut tem a sua própria sociedade, a Rui Pena e Arnaut. E Assunção Cristas foi para a Vieira de Almeida (VdA) no final de 2021.

Foi a este escritório que o Banco de Portugal entregou pelo mesmo método de contratação 9,5 milhões de euros de ajustes directos desde 2015. Neste período, o total de contratos deste tipo entregues à VdA pelo Estado atingiu os 26,5 milhões. Dos 12,7 milhões de euros em ajustes ganhos pela Cuatrecasas nos últimos oito anos, também mais de 8,5 milhões dizem respeito a seis contratos com o regulador do sector bancário.

Tendo em conta que o tecto máximo para celebração de ajustes directos relativos a prestação de serviços é de 20 mil euros, como explicar a sistemática ultrapassagem deste valor nos contratos feitos com os escritórios de advogados à margem das leis destinadas a fomentar a livre concorrência e a transparência?

A explicação reside nas excepções legais destinadas à aquisição de serviços intelectuais. O código da contratação pública permite pôr de lado os concursos públicos quando “a natureza das respectivas prestações, nomeadamente as inerentes a serviços de natureza intelectual, não possibilite a elaboração de especificações contratuais suficientemente precisas” para fazer comparações entre a qualidade e os preços dos diferentes concorrentes.

Existe mesmo doutrina jurídica a defender a impossibilidade de adquirir serviços jurídicos pelos mecanismos habituais da concorrência, como os concursos públicos, por não ser razoável sujeitar a escolha do prestador de serviços ao critério do preço mais baixo, não só por a aptidão técnica e intelectual do prestador do serviço não ser mensurável, como ainda por este tipo de contratação implicar que o adjudicante deposite confiança nele e no seu trabalho.

Porém, não só o Tribunal de Contas como também os tribunais comuns têm censurado, e por vezes condenado, quem contrata serviços jurídicos à revelia dos princípios da livre concorrência. 

“É entendimento do Tribunal de Justiça da União Europeia que as obrigações relativas à igualdade de tratamento e à transparência se aplicam de pleno direito” à contratação de serviços jurídicos, recordavam em 2015 os desembargadores que aplicaram uma pena suspensa a dirigentes da Câmara de Lisboa por terem escolhido a dedo juristas para elaborarem um estudo para a Casa Fernando Pessoa, com quem, de resto, tinham relações familiares.

Mesmo que determinado escritório seja especialista em determinada área do Direito, “existem seguramente muitas outras sociedades aptas a prestar serviço” nessa mesma especialidade, tem assinalado o Tribunal de Contas, para concluir que, podendo não ser o único a levar em conta para a contratação, o critério preço também não deve ser simplesmente afastado.


Quando a administração central ou organismos por si directamente tutelados têm necessidade deste tipo de contratações, a lei prevê que averiguem primeiro junto do centro de competências jurídicas do Estado, o Jurisapp, se os consultores que aqui trabalham se podem encarregar da tarefa.

A esta exigência, que não abrange as autarquias, soma-se uma disposição que tem sido inscrita nos Orçamentos do Estado dos últimos anos, incluindo o de 2024, segundo a qual os estudos, pareceres, projectos e serviços de consultoria, bem como a representação judiciária e o mandato forense, “devem ser realizados por via dos recursos próprios das entidades contratantes”. A decisão de contratar — incluindo a renovação de contratos em vigor — apenas pode ser tomada em situações excepcionais devidamente fundamentadas, “desde que demonstrada a impossibilidade de satisfação das necessidades por via de recursos próprios da entidade contratante e após autorização do membro do Governo responsável pela área em causa”. Esta competência pode, no entanto, ser delegada.

Actualmente existem neste centro jurídico 17 consultores, com salários que oscilam entre os 2500 e os 4700 euros, estando previstos mais dez destes profissionais no mapa de pessoal aprovado para 2024.

De acordo com dados fornecidos pela Presidência do Conselho de Ministros, o Jurisapp contou este ano com um orçamento de 2,1 milhões e recebeu 36 pedidos de parecer prévio sobre contratação externa, só se tendo conseguido encarregar de responder a um deles. Nos restantes casos “não pôde assegurar os serviços jurídicos em causa, tanto por uma questão de volume de trabalho como pela natureza e especificidade dos pedidos”. Em média, são submetidos a este serviço 400 novos processos por ano.

Ouvida no Parlamento em 2017 sobre a participação de um escritório de advogados Campos Ferreira, Sá Carneiro & Advogados na elaboração das alterações ao Estatuto do Gestor Público, na altura da contratação de António Domingues para a Caixa Geral de Depósitos, a então ministra e hoje eurodeputada Maria Manuel Leitão Marques respondeu sem papas na língua: "As leis não chegam à Presidência do Conselho de Ministros com carimbo de escritórios de advogados. Se alguns ministros têm ou tiveram apoio de escritórios na sua produção legislativa, no meu caso isso nunca aconteceu. Infelizmente é uma prática mais corrente do que devia ser."

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