O insuportável (e cúmplice) discurso sobre violência sexual
O problema da violência sexual é a maioria das violações não serem reportadas à polícia, não as imaginárias numerosas queixas falsas.
Maria João Marques
A argumentista e realizadora A. M. Lukas apresentou uma queixa no tribunal de Nova Iorque contra Nuno Lopes, alegando ter sido por este violada em 2006. Seguiram-se, cá, inevitáveis reações de descrédito da mulher. É, claro, uma oportunista. Na saloiice nacional, aparentemente devemos fazer fé que uma americana, acaso queira ganhar fama e dinheiro de maneira baixa, veria como boa estratégia inventar uma violação e acusar um ator português longe de milionário e desconhecido no contexto americano.
Tenho uma amiga que diz, sabiamente, que uma mulher só conhece um homem quando está sozinha num quarto com ele. É verdade. Sabemos, pela nossa história e pela das nossas amigas, como tantas características perigosas e abusivas de certos homens se revelam só fechados num quarto com uma mulher. E, no entanto, tivemos um rol de homens a asseverar publicamente a limpidez de Nuno Lopes num encontro sexual. Espantoso.
Outras reações escudaram-se no útil conceito dos Pôncios Pilatos da atualidade: a presunção de inocência. Sucede que não somos tribunais. Nem a verdade se esgota no que se produz em tribunal. Existe verdade num livro autobiográfico, numa pesquisa científica, numa reportagem jornalística, num documentário. Os tribunais têm o seu trabalho, e irão fazê-lo, mas a comunidade não é um tribunal.
Outras reações escudaram-se no útil conceito dos Pôncios Pilatos da atualidade: a presunção de inocência. Sucede que não somos tribunais
(Lembremos o julgamento mostrado no filme Denial, ou nos livros de Deborah Lipstadt, pretendendo determinar se o Holocausto era verdade. Como se aquela verdade coubesse aos tribunais determinar, ao invés de ser determinada por historiadores e relatos dos sobreviventes.)
Também fomos brindados com os argumentos ignorantes que sempre acompanham casos mediáticos de violência sexual. Elenco três.
1. Só se lembrou de contar agora, alguém acredita? Bem, é da natureza do trauma, sexual ou outro, demorar a encontrar uma narrativa para o poder contar. Podemos ir a Freud, que considera o trauma uma avassaladora negação do princípio do prazer. Tão avassaladora que ficará (simplifico muito) por algum tempo reprimida, escondida nas profundezas, reaparecendo ocasionalmente em pesadelos e flashbacks.
Podemos ir a Lacan, que descreve o trauma como um evento terrível cuja realidade não se consegue apreender toda no momento. Donde, a vivência do trauma perdura no tempo, porque não se viveu tudo de uma vez.
Faz parte dos traumas sexuais demorar tempo a falar publicamente sobre o que se passou. Por isso há a discussão dos prazos de prescrição dos crimes sexuais. Por isso o Adults Survivors Act de Nova Iorque permitiu extraordinariamente queixas de crimes sexuais já prescritos. Muitas mulheres, ao fim de muitos anos, decidiram que era o tempo em que finalmente conseguiam confrontar na justiça os seus agressores.
É, assim, poeira muito ostensiva desqualificar uma queixa por violação feita 17 anos depois, sobretudo de alguém que foi ao hospital, falou com a polícia e foi tratada durante anos por uma violação.
2. Pediu indemnização, que horror, que oportunista. Bom, há estudos feitos sobre os custos financeiros que uma violação traz a uma mulher. Entre gastos em tratamentos médicos, psicólogos e psiquiatras, e perdas de produtividade advindas de problemas de saúde física ou mental, uma vítima de violação tem um custo financeiro de 122.461 dólares. Números de um estudo publicado pelo oficialíssimo Center for Disease Control americano.
É, portanto, muito desonesto (e misógino) pretender que uma vítima de um crime com tão grande impacto financeiro não deva ser indemnizada. E fazer depender a solidariedade com a vítima da assunção por esta dos enormes custos monetários de um crime cometido contra ela.
Costumo dizer que as mulheres só são acreditadas sobre violência sexual se fizerem o favor de morrer, ou, pelo menos, ficarem entrevadas para a vida, de modo a poderem ser vistas como credíveis. Calhando devia acrescentar que uma vítima de violação credível também pode ser a que aceita o destino da miséria financeira e de uma vida de pobreza. Fora disso são todas umas mentirosas.
É muito desonesto (e misógino) pretender que uma vítima de um crime com tão grande impacto financeiro não deva ser indemnizada
3. Chegamos às acusações falsas de violação, esse mito pernicioso usado para descredibilizar qualquer mulher que aponte o dedo a um homem. São, na verdade, muito raras. Há anos o Channel 4, a propósito de um estudo do Crown Prosecution Service britânico, constatava isto: há mais homens violados (por outros homens) do que homens falsamente acusados de violação.
A violência sexual é um crime imensamente sexualizado. Os homens são os agressores e as mulheres as vítimas. Segundo o RASI de 2022, 97,7% dos violadores são homens e 93,6% das vítimas são mulheres. É neste contexto de desvalorizar um crime cometido por homens contra mulheres que surge o mito das acusações falsas, com o objetivo de descredibilizar por definição as vítimas (mulheres, seres de segunda) e não maçar os humanos importantes (homens).
O estudo do Home Office britânico A Gap or a Chasm? Attrition in Reported Rape Cases, de Liz Kelly et al., coloca as acusações falsas em cerca de 3%, e reconhece este mito como causa de investigação negligente e má vontade judicial para com crimes sexuais. A negligência é de tal ordem que em 2009, em Detroit, um polícia descobriu num armazém mais de 11.000 kits de violação nem sequer analisados, apesar das queixas apresentadas. Quando analisados, descobriu-se o ADN de vários violadores em série que as autoridades nunca julgaram importante perseguir.
O problema da violência sexual é a maioria das violações não serem reportadas à polícia, não as imaginárias numerosas queixas falsas. Segundo o Departamento de Justiça americano, entre 2006 e 2010, 211.200 crimes sexuais por ano não foram reportados às autoridades. 65% do total.
A discussão sobre casos concretos de violência sexual também não pode existir no vácuo. Precisa de existir dentro da realidade, de resto estudada e reconhecida pelos organismos oficiais. E o nível de discurso a que assistimos tem um objetivo: dissuadir mulheres de apresentarem queixas por violência sexual, mostrando-lhes que serão, à partida, tratadas como mentirosas, e garantir aos agressores continuação da impunidade.
Os tribunais farão o seu trabalho. Da minha parte, o benefício da dúvida e a solidariedade vai para qualquer mulher com coragem para contar publicamente uma história credível de violência sexual.
Intoleravelmente parcial! Eu não penso para lado nenhum, porque não sei o que aconteceu. A opinadora já fez o seu julgamento.
ReplyDeleteO julgamento dela é a favor de dar o benefício da dúvida às mulheres e contra o julgamento (dos homens) em desconfiar das mulheres e declará-las mentirosas, por princípio, de maneira a protegerem-se uns aos outros.
Delete