Não digo que não houve erros na maneira como se tratou a Rússia após a queda da URSS. Imprudência e arrogância, falta de inteligência para perceber que uma hecatombe daquelas não desaparece sem ruído e que é preciso cuidar dos escombros para que não nos enterrem. No entanto, atribuir o comportamento bélico de Putin a uma teoria do princípio do século XIX, como se a teoria legitimasse o ataque de Putin passados 200 anos, não tem qualquer sentido.
Essa teoria de Monroe, bem como a realpolitik que tanto gostam de citar são de outra realidade. Já não estamos no século em que o Vaticano era a lei internacional, nem no século da Vestfália. Já não estamos num tempo em que o Direito Internacional deixava de fora a maioria dos países, colonizados e sem autonomia ou no tempo entre as duas Grandes Guerras onde as potências tinham relações bilaterais num mundo parcelado. Isso já não é a realidade e as teorias que serviam para essa época não servem para hoje.
Estamos no tempo das Nações do Planeta estarem Unidas numa Organização global, por uma Carta de Direitos e por jurisprudência, em pé de igualdade jurídica. Estamos no tempo do Tribunal Penal Internacional. Hoje em dia, se uma pessoa é presa na China ou na Rússia ou nos EUA ou no Sudão o mundo inteiro vai para a rua exigir a sua libertação.
Argumentos de «esfera de influência», «definição de vizinhos», «espaço vital» e etc., chocam com o direito Internacional actual que garante a todos autonomia, auto-determinação e soberania. Esta é a actual realpolitik.
A ideia de a Rússia, uma potência nuclear, se sentir ameaçada por um país sem armas nucleares, que nada pode contra a possibilidade de ser aniquilada em 30 segundos não tem sentido. Aliás, em 2014 quando a Rússia invade a Crimeia, ninguém falava do alargamento da NATO, nem a Ucrânia estava interessada nisso.
John Mearsheimer parece o Lakrov a falar: 'temos armas nucleares e se não se submeterem damos cabo de vocês' é um discurso inaceitável nos dias que correm. É um discurso de velhos de um mundo que já não existe nem queremos que exista.
Dizer que Putin ataca a Ucrânia por culpa dos EUA e da NATO, sendo que a NATO é uma aliança de defesa que não ataca ninguém e só mete botas no terreno que a ONU o determina, é uma ideia sem fundamento nenhum.
É verdade que muitos outros ou quase todos cometeram erros, que os EUA dizimaram os índios, que os britânicos foram uma potência de subjugação de povos, que a Alemanha teve os nazis, que Portugal e outros também colonizaram, mas que interessa isso agora neste momento em que o que interessa é que Putin páre de destruir o que não é seu e de matar e deportar milhares de pessoas.
John Mearsheimer fala dos processos da história como se Putin fosse um tronco que vai na corrente dos eventos inanimado e sem volição, mas Putin é uma pessoa e é uma pessoa desequilibrada, rancorosa, com mania de grandiosidade, com um passado de violência na KGB, ganancioso de dinheiro e poder, corrupto, assassino, iludido a pensar que é uma grande académico. Ora, estas características de Putin, não são culpa da NATO nem dos EUA. São dele, da pessoa que ele é.
Fingir que o homem que Putin é não tem responsabilidade na guerra e que é uma vítima da História é uma conversa soviética-comunista acerca das forças inexoráveis da História, como se não tivéssemos livre-arbítrio, consciência, juízo moral e decência.
Seria como dizer que a culpa de Hitler desencadear uma guerra global foi dos outros. Acontecimentos históricos podem esclarecer, em parte, o surgimento de um homem daqueles, mas não são a causa dos seus actos particulares, a decisão da guerra é dele, como esta é de Putin. Tanto assim é que Putin tem que mandar prender toda a gente e sentar-se a 20 metros dos outros por estar isolado nesta megalomania.
Os velhos defensores das tinas são os responsáveis pela repetição dos erros da História. As NU, a Unesco, a UE e outros organismos foram construídos pelos que se opunham às tinas e acreditavam que é possível mudar a realidade para melhor.
As relações internacionais não são uma cartilha de dogmas inalteráveis. Talleyrand teve razão no seu tempo, mas o nosso tempo é outro tempo e já não é o seu tempo.
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