March 25, 2022

As «tinas» de hoje não são as de ontem

 


Hoje dei-me ao trabalho de ler o tal artigo do tal John Mearsheimer. Confesso que fiz um frete em ler aquilo porque ele constrói um discurso em pressupostos duma realidade passada que já não se adequa ao presente.

Não digo que não houve erros na maneira como se tratou a Rússia após a queda da URSS. Imprudência e arrogância, falta de inteligência para perceber que uma hecatombe daquelas não desaparece sem ruído e que é preciso cuidar dos escombros para que não nos enterrem. No entanto, atribuir o comportamento bélico de Putin a uma teoria do princípio do século XIX, como se a teoria legitimasse o ataque de Putin passados 200 anos, não tem qualquer sentido.

Essa teoria de Monroe, bem como a realpolitik que tanto gostam de citar são de outra realidade. Já não estamos no século em que o Vaticano era a lei internacional, nem no século da Vestfália. Já não estamos num tempo em que o Direito Internacional deixava de fora a maioria dos países, colonizados e sem autonomia ou no tempo entre as duas Grandes Guerras onde as potências tinham relações bilaterais num mundo parcelado. Isso já não é a realidade e as teorias que serviam para essa época não servem para hoje.

Estamos no tempo das Nações do Planeta estarem Unidas numa Organização global, por uma Carta de Direitos e por jurisprudência, em pé de igualdade jurídica. Estamos no tempo do Tribunal Penal Internacional. Hoje em dia, se uma pessoa é presa na China ou na Rússia ou nos EUA ou no Sudão o mundo inteiro vai para a rua exigir a sua libertação.

Argumentos de «esfera de influência», «definição de vizinhos», «espaço vital» e etc., chocam com o direito Internacional actual que garante a todos autonomia, auto-determinação e soberania. Esta é a actual realpolitik.

A ideia de a Rússia, uma potência nuclear, se sentir ameaçada por um país sem armas nucleares, que nada pode contra a possibilidade de ser aniquilada em 30 segundos não tem sentido. Aliás, em 2014 quando a Rússia invade a Crimeia, ninguém falava do alargamento da NATO, nem a Ucrânia estava interessada nisso.
John Mearsheimer parece o Lakrov a falar: 'temos armas nucleares e se não se submeterem damos cabo de vocês' é um discurso inaceitável nos dias que correm. É um discurso de velhos de um mundo que já não existe nem queremos que exista. 

Dizer que Putin ataca a Ucrânia por culpa dos EUA e da NATO, sendo que a NATO é uma aliança de defesa que não ataca ninguém e só mete botas no terreno que a ONU o determina, é uma ideia sem fundamento nenhum.

É verdade que muitos outros ou quase todos cometeram erros, que os EUA dizimaram os índios, que os britânicos foram uma potência de subjugação de povos, que a Alemanha teve os nazis, que Portugal e outros também colonizaram, mas que interessa isso agora neste momento em que o que interessa é que Putin páre de destruir o que não é seu e de matar e deportar milhares de pessoas.

John Mearsheimer fala dos processos da história como se Putin fosse um tronco que vai na corrente dos eventos inanimado e sem volição, mas Putin é uma pessoa e é uma pessoa desequilibrada, rancorosa, com mania de grandiosidade, com um passado de violência na KGB, ganancioso de dinheiro e poder, corrupto, assassino, iludido a pensar que é uma grande académico. Ora, estas características de Putin, não são culpa da NATO nem dos EUA. São dele, da pessoa que ele é. 
Fingir que o homem que Putin é não tem responsabilidade na guerra e que é uma vítima da História é uma conversa soviética-comunista acerca das forças inexoráveis da História, como se não tivéssemos livre-arbítrio, consciência, juízo moral e decência. 
Seria como dizer que a culpa de Hitler desencadear uma guerra global foi dos outros. Acontecimentos históricos podem esclarecer, em parte, o surgimento de um homem daqueles, mas não são a causa dos seus actos particulares, a decisão da guerra é dele, como esta é de Putin. Tanto assim é que Putin tem que mandar prender toda a gente e sentar-se a 20 metros dos outros por estar isolado nesta megalomania. 

Os velhos defensores das tinas são os responsáveis pela repetição dos erros da História. As NU, a Unesco, a UE e outros organismos foram construídos pelos que se opunham às tinas e acreditavam que é possível mudar a realidade para melhor.

As relações internacionais não são uma cartilha de dogmas inalteráveis. Talleyrand teve razão no seu tempo, mas o nosso tempo é outro tempo e já não é o seu tempo.

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