E agora, de acordo com o presente argumento e o anterior, com qual dessas duas espécies a alma se mostra semelhante e revela maior afinidade?
No meu modo de pensar, Sócrates, respondeu, não há quem deixe de concordar, por mais obtuso que seja, se te acompanhar o raciocínio, que em tudo e por tudo a alma tem mais semelhança com o que sempre se conserva o mesmo do que com o que varia. [a alma é da mesma natureza que o invisível e o corpo com o visível]
E o corpo?
Com a outra espécie.
XXVIII – Examina agora a questão da seguinte maneira: enquanto se mantêm juntos o corpo e a alma, impõe a natureza a um deles de obedecer [o comportamento do corpo deve ser racional e não o oposto] e servir e ao outro comandar e dominar. Sob esse aspecto, qual deles se assemelha ao divino e qual ao mortal? Não te parece que o divino é naturalmente feito para comandar e dirigir, e o mortal para obedecer e servir? [a realidade sensível, por sê-lo, não serve de demonstração do inteligível]
Acho que sim.
E com qual deles a alma se parece?
Evidentemente, Sócrates, a alma se assemelha ao divino, e o corpo ao mortal .
Considera agora, Cebete, continuou, se de tudo o que dissemos não se conclui que ao que for divino, imortal, inteligível, de uma só forma, indissolúvel, sempre no mesmo estado e semelhante a si próprio é com o que alma mais se parece; e o contrário: ao humano, mortal e ininteligível, multiforme, dissolúvel e jamais igual a si mesmo, com isso é que o corpo se parece? Poderemos, amigo Cebete, argumentar de outro modo e dizer que não é dessa maneira?
Não é possível.
XXIX – E então? Se for assim, não ficará o corpo sujeito a dissolver-se depressa, conservando-se a alma indissolúvel ou num estado que muito disso se aproxima? [1ª conclusão: o corpo, sendo composto, corrompe-se mas como a alma não é composta, antes simples, não se dissolve, pois só os compostos se corrompem, se desagregam]
Sem dúvida.
Observa ainda, continuou, como depois que o homem morre, sua porção visível, o corpo, a que damos o nome de cadáver, colocado também num lugar visível, embora o sujeito a dissolver-se, a desagregar-se, de imediato não revela nenhuma dessas alterações, conservando-se intacto por tempo relativamente longo; e se, no momento da morte, o corpo estiver em boas condições, sendo boa, igualmente, a estação do ano, então conserva-se muito mais tempo. Quando o corpo é descarnado e embalsamado, tal como se faz no Egito, ele permanece quase inteiro por tempo incalculável. Aliás, até mesmo no corpo em decomposição, alguma de suas partes: ossos, tendões; e tudo mais do gênero, são, por assim dizer, imortais. [levam muito tempo a desfazer-se] Não é isso mesmo?
Certo.
Ao passo que a alma, a porção invisível, que vai para um lugar semelhante a ela, nobre, puro e invisível, o verdadeiro Hades, ou seja, o Invisível, para junto de um deus sábio e bom, para onde também, se deus quiser, dentro de pouco irá minha alma: faz sentido que essa alma, com semelhante origem e constituição, ao separar-se do corpo, se dissipasse imediatamente e se destruísse mais depressa que o próprio corpo, conforme crê a maioria dos homens? Nunca, meus caros Símias e Cebete! Pelo contrário; o que se dá é o seguinte: se ela é pura e no momento de sua libertação não arrastar consigo nada corpóreo por durante a vida ter evitado comércio voluntário com o corpo e se ter recolhido em si mesma [ter procurado a sabedoria da alma] e tendo sempre isso como preocupação exclusiva, que outra coisa não é senão filosofar? E, no rigoroso sentido da expressão, preparou-se para morrer facilmente... Pois tudo isso não será um exercício para a morte? [a filosofia é, pois, um exercício de preparação para a morte]
Sem dúvida nenhuma.
Assim constituída, dirigi-se para o que lhe assemelha, [o semelhante atrai o semelhante] para o invisível, divino, imortal e inteligível, onde, ao chegar, vive feliz, liberta do erro, da ignorância, do medo, dos amores selvagens e dos outros males da condição humana, passando tal como se diz dos iniciados, a viver o resto do tempo na companhia dos deuses. Falaremos desse jeito, Cebete, ou de outra forma?
XXX – Assim mesmo, por Zeus, respondeu Cebete.
No caso, porém, conforme penso, de estar manchada e impura ao separar-se do corpo,
por ter convivido sempre com ele, cuidado dele e o ter amado e estar fascinada por ele e por
seus apetites e deleites, a ponto de só aceitar como verdadeiro o que tivesse forma corpórea,
que se pode ver, tocar, beber, comer, ou servir para o amor [ o senso comum que se guia exclusivamente pelo conhecimento sensível na sua vida]; e se ela, que se habituou a odiar, temer e evitar o que é obscuro e invisível para os olhos, porém inteligível e
apreensível com a filosofia: acreditas que uma alma nessas condições esteja recolhida em si
mesma e sem mistura no momento em que deixar o corpo?
De forma alguma, respondeu.
Porém segundo penso, de todo em todo saturada de elementos corpóreos que com ela cresceram como resultado de sua familiaridade e contínua comunicação com o corpo, de que nunca se separou e de que sempre cuidara.
Sem dúvida.
Então, meu caro, terás de admitir que tudo isso é espesso, terreno e visível. A alma, com essa sobrecarga, torna-se pesada e é de novo arrastada para a região visível, de medo do Invisível – o Hades, como e diz – e rola por entre os monumentos e túmulos, na proximidade dos quais têm sido vistos fantasmas tenebrosos, semelhantes aos espectros dessas almas que não se libertaram puras de corpo e que se tornaram visível. [a alma, se passou a vida afastada de si e da sua natureza inteligível, sempre a servir o corpo, fica presa a ele depois de morrer e não sai dali de perto do túmulo onde está o corpo enterrado, o que explica certas luzes que se vêem nos cemitérios]
É muito possível, Sócrates, que seja assim mesmo.
Sim, é muito possível, Cebete, e também que essas almas não sejam dos bons, porém dos maus, que se vêem obrigadas a vagar por esse lugares, como castigo de sua conduta durante a vida, que fora péssima. E assim ficam a vagar, até que o apetite do elemento corporal a que sempre estão ligadas volte a prendê-las noutros corpos. [estas almas estão entre o ser e o não-ser]
XXXI – Como é natural, voltam a ser aprisionadas em naturezas de costumes iguais aos que elas praticaram em vida.
A que a naturezas te referes, Sócrates?
É o seguinte: as que eram dadas à glutonaria, ao orgulho ou à embriaguez desbragada, entram naturalmente nos corpos de asnos e de animais congêneres. Não te parece?
Falas com muita propriedade.
As que cometeram injustiças, a tirania ou a rapina, passam para a geração dos lobos, dos açores e dos abutres. Para onde mais podemos dizer que vão as almas dessa natureza?
[o modo de vida moral é um instrumento de felicidade]
Não há dúvida, respondeu Cebete; é para esses corpos que elas vão.
E não é evidente, continuou, que o mesmo se passa com os demais, por se orientarem todas elas no sentido de suas próprias tendências?
É claro, observou; nem poderia ser de outra maneira.
Logo, disse, os mais felizes e que vão para os melhores lugares são os que praticam a virtude cívica e social que dominamos temperança e justiça, por força apenas do hábito e da disposição própria, sem a participação da filosofia e da inteligência.
Por que serão esses os mais felizes?
Por ser natural que passem para uma raça sociável e mansa, de abelhas, vespas ou formigas, ou até para a mesma raça, a humana, a fim de gerarem homens moderados.
Sem dúvida.
XXXII – Para a raça dos deuses não é permitido passar os que não praticaram a Filosofia nem partiram inteiramente puros, mas apenas os amigos da Sabedoria. É por isso, meus caros Símias e Cebete, que os verdadeiros filósofos se acautelam contra os apetites do corpo, resistem-lhes e não se deixam dominar por eles; não têm medo da pobreza nem da ruína de sua própria casa, como a maioria dos homens, amigos das riquezas, nem temem a falta de honrarias e a vida inglória, como se dá com os amantes do poder e das distinções. Não é essa a razão de se absterem de tudo?
De fato, Sócrates; nada disso lhes ficaria bem, falou Cebete.
Não, por Zeus, retorquiu. Por isso mesmo, Cebete, todos os que cuidam da alma e não
vivem simplesmente para o culto do corpo, dizem adeus a tudo isso e não seguem o
caminho dos que não sabem para onde vão. Convencidos de que não devemos fazer nada
em contrário à Filosofia nem ao que ela prescreve para libertar-nos e purificar-nos, voltam-se para esse lado, seguindo na direção por ela aconselhada.
(continua)
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