(sensação de utilidade - alguém do outro lado do Atlântico que começou a estudar Platão e tem que fazer um trabalho descobriu estes posts sobre o Fédon e está a aproveitar - pois que aproveite)
Essa é a razão, Símias, de, na opinião da maioria dos homens, não merecer viver o indivíduo a quem nada disso é agradável e que não se importa com tais práticas, por achar- se muito mais perto da condição de morto e por não dar a menor importância aos prazeres alcançados por intermédio do corpo. [para o homem comum cujo objectivo são os prazeres do corpo, não se importar com tais práticas é estar a dois passos da morte]
Tens razão.
X – E como referência à aquisição do conhecimento? O corpo constitui ou não constitui obstáculo, quando chamado para participar da pesquisa? O que digo é o seguinte: a vista e o ouvido asseguram aos homens alguma verdade? Ou será certo o que os poetas não se cansam de afirmar, que nada vemos nem ouvimos com exatidão? Ora, se esses dois sentidos corpóreos não são nem exatos nem de confiança, que diremos dos demais, em tudo inferiores aos primeiros? Não pensas desse modo? [referência aos filósofos pré-socráticos e à multiplicidade de teorias fundada nos sentido da observação]
Perfeitamente, respondeu.
Então, perguntou, em que condições atinge a alma a verdade? [quais são os requisitos do caminho para a verdade?] É fora de dúvida que, desde o momento em que tenta investigar algo na companhia do corpo, vê se lograda por ele.
Tens razão.
Por conseguinte, admitindo que a natureza das coisas [a verdade] possa ser percebida, não será justamente através do raciocínio?
Perfeitamente.
Ora, a alma pensa melhor quando não tem nada disso [as coisas sensíveis] a perturbá-la, nem a vista nem o ouvido, nem dor nem prazer de espécie alguma, e concentrada ao máximo em si mesma, [na reflexão intelectual] dispensa a companhia do corpo, evitando tanto quanto possível qualquer comércio com ele, e esforça-se por apreender a verdade.
Certo.
E não é nesse estado que a alma do filósofo despreza o corpo e dele foge, trabalhando por concentrar-se em si própria?
Evidentemente.
E com relação ao seguinte, Símias: afirmaremos ou não que o Justo em si mesmo seja alguma coisa?
Afirmaremos, sem dúvida, por Zeus.
E também o Belo em si e o Bem?
[Platão pergunta se existe a Verdade, se as coisas são algo em si mesmas, independentes de nós. A tal questão que mais tarde Kant declara estar para além dos limites do que a razão é capaz de conhecer e, por isso, dar origem a muitos mal-entendidos e falsos caminhos na filosofia]
Também.
E algum dia já percebeste com os olhos qualquer deles?
Nunca, respondeu.
Ou por intermédio de outro sentido corpóreo? Refiro-me a tudo: grandeza, saúde, força e o mais que for, numa palavra: à essência de tudo o que existe, conforme a natureza de cada coisa. É por intermédio do corpo que percebemos o que neles há de verdadeiro, ou tudo se passará da seguinte maneira: quem de nós ficar em melhores condições de pensar em si mesmo o mais exatamente possível o que se propõe examinar, não é esse que estará mais perto do conhecimento de cada coisa? Ou não? [portanto, os instrumentos do conhecimento adequam-se aos objectos a conhecer - se queremos saber a cor de um objecto temos de o ver mas para saber o que é a cor em si mesma, usamos a inteligência]
Perfeitamente.
E não alcançará semelhante objetivo da maneira mais pura quem se aproximar de cada coisa só (a Grandeza, a Saúde, a Força) com o pensamento, sem arrastar para a reflexão a vista ou qualquer outro sentido, nem associá-los a seu raciocínio, porém valendo-se do pensamento puro, [puro=sem interferência dos sentidos] esforçar-se por apreender a realidade de cada coisa em sua maior pureza, apartado, quanto possível, da vista e do ouvido, e, por assim dizer, de todo o corpo, por ser o corpo fator de perturbação para a alma e impedi-la de alcançar a verdade e o pensamento, sempre que a ele se associa? [esta libertação progressiva dos sentidos é uma preparação para a morte onde a libertação da inteligência (alma) é total- a morte ou o estado de estar morto é um outro nível de realidade onde se tem acesso à Verdade, se se preparou para vê-la com a inteligência, ao longo da vida corpórea. Caso contrário reencarna outra vez] Não será, Símias, esse indivíduo, se houver alguém em tais condições, [não sabemos se essa meta é alcançável] que alcançara o conhecimento do Ser? [o que cada coisa é, na sua essência]
Tens toda a razão, Sócrates, respondeu Símias.
XI – Por tudo isso, continuou, é natural nascer no espírito dos filósofos autênticos certa convicção que os leva a discorrer entre eles mais ou menos nos seguintes termos: Há-de haver para nós outros algum atalho direto, quando o raciocínio nos acompanha na pesquisa; porque enquanto tivermos corpo e nossa alma se encontrar atolada em sua corrupção, [as emoções e desejos do corpo são um empecilho ao pensamento] jamais poderemos alcançar o que almejamos. E o que queremos, declaremo-lo de uma vez por todas, é a Verdade. Não têm conta os embaraços que o corpo nos apresta, pela necessidade de alimentar-se, sem falarmos nas doenças, que são outros empecilhos na caça da verdade. [a investigação da Verdade é como uma caça onde se vão cercando os conceitos, através da dialéctica, até chegar à única definição possível que revela a Verdade da 'coisa'] Com amores, receios, cupidez, imaginações de toda a espécie e um sem número de banalidades, a tal ponto ele nos satura, que, de facto, como se diz, por sua causa jamais conseguiremos alcançar o conhecimento do quer que seja. Mais, ainda: guerras, batalhas, dissensões, suscita-as exclusivamente o corpo com seus apetites. Outra causa não têm as guerras senão o amor do dinheiro e dos bens que nos vemos forçados a adquirir por causa do corpo, visto sermos obrigados a servi-lo. Se carecemos de disponibilidade [mental] para nos dedicarmos à Filosofia, a causa é tudo isso que enumeramos. O pior é que, mal conseguimos alguma trégua e nos dispomos a refletir sobre determinado ponto, na mesma hora o corpo intervém para perturbar-nos de mil modos, causando temor e inquietude em nossa investigação, até deixar-nos inteiramente incapazes de perceber a verdade. [como têm falta de hábito em treinar o raciocínio, quando começam a discorrer, ficam logo confusos à primeira objecção e desistem] Por outro lado, ensina-nos a experiência que, se quisermos alcançar o conhecimento puro de alguma coisa, teremos de separar-nos do corpo e considerar apenas com a alma como as coisas são em si mesmas. Só nessas condições, ao que parece, é que alcançaremos o que desejamos e do que nos declaramos amorosos, a sabedoria, [a filosofia define-se tradicionalmente como um amor à sabedoria]isto é, depois de mortos, conforme a lógica do nosso argumento o indica, nunca enquanto vivermos. Ora, se realmente, na companhia do corpo não é possível obter o conhecimento puro do que quer que seja, de duas uma terá de ser: ou jamais conseguiremos adquirir esse conhecimento, [tudo o que se consegue com os sentidos do corpo são conhecimentos provisórios, relativos, logo, não verdadeiros] ou só o faremos depois de mortos, pois só então a alma se recolherá em si mesma, separada do corpo, nunca antes disso. [portanto, o corpo é um cárcere da alma que a prende e desvia da verdade]Ao que parece, enquanto vivermos, a única maneira de ficarmos mais perto do pensamento, é abstermo-nos o mais possível da companhia do corpo e de qualquer comunicação com ele, salvo e estritamente necessário, sem nos deixarmos saturar pela sua natureza, sem permitir que nos macule, até que a divindade nos venha libertar. [daí que a filosofia seja um treino de morrer, quer dizer, um treino de habituar-se a não raciocinar com os sentidos]Puros, assim, e livres da insanidade do corpo, com toda a probalidade nos uniremos a seres iguais a nós e reconheceremos por nós mesmos o que for estreme de impurezas. [Platão acredita que quem consegue atingir a sabedoria há-de juntar-se a outros iguais que também escaparam à reencarnação e vivem no conhecimento da Verdade - daí que Sócrates (em seu entender, um exemplo disso) esteja feliz no dia da morte] É nisso, provavelmente, que consiste a Verdade. Não é permitido ao impuro entrar em contato com o puro. – Eis aí, meu caro Símias, quero crer, o que necessariamente pensam entre si e conversam uns com os outros os verdadeiros amantes da sabedoria. Não é esse, também, o teu modo de pensar?
Perfeitamente, Sócrates.
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