March 05, 2020

Sobre a música e a liberdade - um texto da 'garota não'.



Sobre a música e a liberdade

Há um ano atrás o Festival de Música de Setúbal trouxe à ordem do dia alguns dos mais inquietantes contributos a que assisti sobre a forma como a música pode ser um exercício de liberdade.

Falou-se de condição mental, doenças degenerativas, integração e dignidade. E dois dos relatos que mais me impressionaram relacionavam a música com contextos particularmente severos: prisões e zonas de guerra.

O 1.º baseava-se num estudo com mulheres reclusas: no início só participavam nas sessões para cumprir pena, poucas semanas depois desenhavam em folhas de papel oitavas de teclado onde treinavam a posição dos dedos para fazer bonito na sessão seguinte, chegando a compor as suas próprias peças e a apresentá-las publicamente.

Colheram aplausos, mas sobretudo plantaram na memória a música como corda de escalada, barco à vela, campo de flores, avião: não um ponto de fuga, mas de libertação.

O 2.º baque no peito aconteceu-me com a maneira como a intervenção de um grupo de músicos voluntários junto de crianças em campos de refugiados se manifestava na qualidade do seu sono. Porque as dinâmicas musicais em que as envolviam as fazia rir e descontraía.

Comoveu-me perceber que nos dias das sessões as crianças dormiam períodos mais longos, manifestando menos despertares súbitos (de pesadelos e traumas associados a bombardeamentos de guerra).

Eu, que nunca provei de nenhum destes quadros, posso apenas dizer que é na música que encontro também, muitas vezes, a liberdade. Porque me esvazia quando o corpo está demasiado pesado, me sossega o coração quando tudo lhe dói. Outras vezes, é também uma seara a perder de vista onde derramo todo o meu contentamento.

A música por si só não retira pessoas da prisão nem termina guerras, não acaba com recibos verdes nem com o desmatamento bruto da Amazónia. Não faz com que as mulheres deixem de ser batidas até à morte. Mas acredito que tem esta capacidade incrível de acordar e elevar consciências.

Podemos sempre – sempre – continuar a cantar amores e desamores, mas ela tem em si uma força tão transformadora que, se lhe dermos oportunidade, arrisca-se a ser um dos mais profundos e pungentes exercícios de liberdade: individual e coletiva.

A Garota Não
Música

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